segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Ainda erguendo a minha viga mestre

Dois posts atrás, contei que, para escrever uma reportagem sobre a Ong Um Teto Para Meu País, participaria de um mutirão no feriado. E que colocaria telhas sobre a cabeça de Dona Gilmara sob o risco de descer da estrutura e não encontrar meu próprio chão. Sorte que lá também aprendi a serrar vigas e pregar tábuas. Enquanto reconstruo algumas ideias, compartilho um recado a minha mãe. Psicóloga competente e mulher incrível, de quem tento sempre roubar um pouco mais de sensibilidade e atenção nesse processo tão delicado que é ouvir - e entender - o outro.

"costumo dizer, mãe, que não saio imune das vidas que visito como repórter. parte do mistério está registrado no meu gravador. outra, esta muito maior, no meu coração. num barraquinho de suzano, deitada com olhos esbugalhados de medo dos ratos e dos pernilongos em bando, apalpei uma noite daquela realidade que jamais deveria existir. e, chacoalhada na alma, construí com os voluntários um novo lar para dona gilmara e mais 11 familiares. martelei estruturas, levantei paredes, serrei telhas e as ajeitei com carinho. olhei para aqueles jovens sujos de lama até a testa e desvendei a motivação deles num feriado chuvoso, tudo para erguer o teto de desconhecidos necessitados. uma experiência visceral. e veja só que coisa estranha. a repórter que eu escolhi ser tem muito a ensinar à jovem adulta aqui. preciso vestir mais a pele do outro para entendê-lo de verdade".

Conto mais sobre o projeto, os voluntários e os beneficiados na edição de fevereiro da Época São Paulo.

domingo, 8 de novembro de 2009

Bomba vermelho-sangue

Do blog Amor e Ponto, de Cristiana Guerra:

Casca.
Ele trazia o coração envolto numa casca. De modo que nem parecia haver ali uma batida. Ele era um morto-vivo, sorrindo para o mundo uma alegria comprada em loja. Um dia ele topou com ela. Ela, sim, trazia o seu coração nu, carne viva, pulsando convicto. E foi assim que os dois corações nunca se encontraram. Um dia a casca do coração dele se quebrou e quem ficou nu foi ele, diante do que sentia. Pegou seu próprio coração com as mãos, quente feito brasa, e o jogava para um lado e para o outro sem saber o que fazer com aquele amor que lhe queimava a pele. Quando olhou aquela bomba vermelho-sangue, o coração dela explodiu em sorriso. Mas o tempo passou de novo e o que ela viu crescer não foi amor: foi outra casca. Outra dura e forte a esconder mais uma vez aquele músculo frágil, a ponto de nem se ouvirem mais as batidas. E o coração que ela não mais vê, não mais sente. E o dela ganha paz de novo, como quem viveu um sonho breve e acordou.

sábado, 7 de novembro de 2009

Um Teto a mais - um chão a menos

Bem-vindo ao Jardim Maitê, diz uma placa impregnada de pó vermelho. Na rua principal, um porco chafurda com o nariz a lama que secou há pouco. Para cada dois dias de sol, uma chuva aumenta o nível do brejo onde vive Dona Gilmara. Tira o sono dos sapos e das doze pessoas que dividem o terreno com eles, sobre um barraco de 3mx4m feito de restos. De madeirites apodrecidas, de portas abandonadas, de telhas quebradas, de dignidade. Não há geladeira, televisão, pia, banheiro. Só três camas (uma de casal e duas de solteiro), um pequeno armário remendado, um sofazinho, um fogão e uma gaiola. E o passarinho, sem dúvidas, tem mais espaço para circular.


Este não é o barraco 3mX4m de Gilmara, mas o dela não é lá muito melhor que isso aqui.

A luz chega por uma gambiarra. Água fica em baldes para banho e para dar conta de diluir as necessidades fisiológicas. Ratos ali, segundo Dona Gilmara, botam medo nos gatos e os pernilongos passeiam pelas frestas, lanchando as bochechas redondas das crianças. Se chove, ninguém dorme. O brejo alaga o barraco e todos sobem nas camas como se pudessem se proteger de um naufrágio. Conheci nesta manhã de sábado Dona Gilmara para uma reportagem sobre a Ong que construirá, daqui a duas semanas, casas emergenciais para algumas famílias da comunidade. Na periferia da periferia. Perguntei se poderia dormir ali antes do mutirão. Ela me olhou incrédula. "Não ronco, juro". Seu riso cheio de espaços no lugar dos dentes garantiu qualquer décimo de metro quadrado à futura hóspede. Gilmara ainda nem ganhou um teto, mas sua sobrevivência já tirou meu chão.