domingo, 28 de junho de 2009

Uma enxurrada, por favor


Uma chuva fininha estampa minha janela tarde adentro. Os pingos magrelos caem tão discretamente que não escorrem. Ficam ali assim, a umedecer sem limpar. Resfriam o vidro e um coração esponjoso. Cada gota dá mais volume ao que lá está retido. Uma chuva fininha que, por não ter pressa, permanece preguiçosa. Pudesse alterar o clima, encomendaria uma enxurrada faxineira, dessas breves e faceiras. Que lavam e espremem tudo de uma só vez. E estedem ao sol para secar mágoas há tanto aguadas.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Minuto de silêncio

"...o diálogo que leva ao amor, que dá a cada um a vontade de se arriscar, não surge da sedução e do charme, mas da coragem de nos apresentarmos por nossas falhas, feridas e perdas".

Contardo Calligaris, na Ilustrada da Folha de S. Paulo.
Dica da Raca, visceral como eu. Aquela amiga que a gente tem vontade de levar no bolso e folhear feito o livrinho "Minuto de Sabedoria".

terça-feira, 23 de junho de 2009

Fundo de armário

O cheiro da página 169 de um livro decorado. A mancha amarela no canto de uma fotografia mal tirada. A data no verso de um bilhete-estopim. O passado empilhado, empoeirado. Entre prateleiras e gavetas esquecidas, tenho feito um resgate reconfortante. Quando a vida faz da gente uma porção de fragmentos, é nesse fundo de armário que tateamos as nossas estruturas e relembramos nosso próprio molde.

domingo, 21 de junho de 2009

Alegria

"Sei que ela está aqui. Como quando perco alguma coisa dentro da bolsa repleta de coisas e toco em todas elas, menos no que é tão urgente. Respiro fundo. Calma. Ela está aqui, tenho certeza. É simples, eu vou encontrar" - do blog Para Francisco.

Sujeito mais importante que o verbo


Ela me ligou semana passada. Queria agradecer pela delicadeza com que contei sua história. Palmira nem sabe, mas abraçou minha alma. Fiquei toda prosa. Porque quem trabalha comigo sabe o quanto eu me remexo na cadeira para escrever sobre a vida dos outros. Sou apenas uma estranha cheia de perguntas. Sempre penso no quanto esses entrevistados confiam em mim ao revelar suas memórias, suas angústias, seus sonhos, suas dores. Nesse jornalismo que eu amo, o sujeito é muito mais importante que o verbo. Por isso peso muito o que ouvi antes de registrar nas páginas da revista. O amor de Palmira e seu Vladmir fazem parte da matéria de capa de junho da Época SP. Coloquei aqui(mais em http://revistaepocasp.globo.com/Revista/Epoca/SP/0,,EMI76616-15368,00-AMORES+IM+POSSIVEIS.html). Ah, lembram do que escrevi no blog enquanto buscava um casal de velhinhos no baile da terceira idade? Foi parar no site da revista também =) http://revistaepocasp.globo.com/Revista/Epoca/SP/1,,EMI77405-16207,00.html

***

Palmira nunca foi de rodopiar assim, com os olhos fechados e o sorriso aberto. Era um-dois pra cá, um-dois pra lá, e só. Seguiu, na vida, uma coreografia sem margem para improvisos: menina de Itaporanga, semiárido da Paraíba com 23 mil habitantes, casou-se logo com o primeiro namorado, aos 15 anos. Antes de completar 17, tinha o mais velho dos quatro filhos. A costureira mudou-se para São Paulo com o marido, ao lado de quem viveu por quase quatro décadas. Quando veio a separação, esperavam dela que desligasse a música. Mas a mulher colocou o salto alto, perfumou-se toda e saiu para dançar.

“Tem gente que se separa, aposenta ou fica viúvo e acha que a vida acabou. A minha começou agora: bendita terceira idade!”, diz, aos 75 anos, a avó de dez netos. A sensação de liberdade é tanta que, em um dos bailes da Sociedade Beneficente União Fraterna, na Lapa, entregou ela mesma uma bandeirinha à senhora que rodopiava com Vladmir. Palmira roubou o pé de valsa para si e deixou a outra fazendo vento pelo salão. “Eu frequentava há muitos anos aquele baile, mas essa foi a primeira vez que nos vimos”, afirma o concorrido cavalheiro de 73 anos. Quando a orquestra encerrou a noite, o advogado aposentado, viúvo e pai de quatro filhos se ofereceu para levá-la em casa, na Freguesia do Ó. No vermelho de um semáforo, inauguraram os beijos e engataram o namoro.

Estivesse ainda em sua cidade natal ou em alguma do interior, “diriam que perdeu a compostura”, afinal, onde já se viu namorar nessa idade? Ela estaria fadada a ouvir as canções sem se levantar da cadeira ao lado de um par. Mas, como os dois vivem na metrópole e seus amigos recém-apaixonados também têm rugas e cabelos brancos, assumiram o desejo de não ficar sós. Há 13 anos, Palmira e Vladmir gastam os sapatos juntos. Elegantes e cúmplices, chamam atenção entre os cerca de 400 frequentadores dos bailes de quarta-feira do Sesc Pompeia: cantarolam com a banda, exibem um repertório de passos qua vai do xote à valsa, dão a volta na pista inteirinha. “Adoro quando ela fica leve, feito aquelas bonecas de pano”, diz ele, ajeitando o bigode.

Saem de lá suados e felizes. E seguem cada um para a sua casa, “para preservar o romance e sentir saudade”. Desde que os filhos formaram as próprias famílias, Palmira e Vladmir moram sozinhos. O casal não quis enxergar tristeza no silêncio dos cômodos vazios, então festejou a independência. “Às vezes eu durmo lá, às vezes ele vem ficar comigo”, diz Palmira. Vez ou outra, enquanto ela borda as encomendas de toalhas, ele sai da frente do computador, aumenta o som e a convida para dançar – ou fazer amor. Mas eles não convivem o tempo todo de rosto colado. “É claro que tem coisa em mim que ele não gosta. E vice-versa. Mas evitamos nos magoar: se um dos dois não abre mão, não funciona”, diz ela. Vladmir completa que se encontraram depois de muitas decepções: “O desafio é não temer que o passado aconteça de novo”.

Eles não usam uma, mas três alianças no dedo. Tudo para dar volume ao comprometimento e avisar às solteiras do baile – bem mais numerosas que os homens – que não atrapalhem o programa, realizado duas vezes por semana. São ciumentos confessos, sim, como tantos adolescentes. A diferença é que esbanjam um fôlego que só essa maturidade bem resolvida pode ter: “Eu não sou velha, sou idosa. O velho acorda e acha que está mais perto da morte. O idoso dá graças a Deus por mais um dia de vida”, diz Palmira.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Meio vazio ou Meio cheio?


- Por que você insiste em ver o copo meio vazio?
Coisas (e gente) pela metade sempre me despertaram desconfiança.
Ninguém fica meio apaixonado, meio chateado. Nem mente ou erra mais ou menos.
Ou seca ou transborda. Ou derruba o líquido ou entorna. Ou fode ou sai de cima.
Insistiram que minha visão andava muito pessimista, envenenada, radical.
Que a porra do copo estava meio cheio.
Peguei o troço, examinei o conteúdo, medi a diferença entre o fundo e a borda.
Fui convencida, mais pela fé que pelas evidências físicas.
- Você tem razão. O copo está meio cheio.
Confesso que a constatação foi um alívio: logo eu, tão pesada.
Saí por aí com um sorriso de orelha a orelha.
Então olho mais uma vez para a minha descoberta...
Não há mais nada lá dentro.
Nem gota, resquício algum.
- Eu esvaziei o copo, Nath.
- Quê?

***
Daí que comentaram comigo, dias depois desse post:

"É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar"

(Copo Vazio, Gilberto Gil)

sábado, 13 de junho de 2009

Invenções minhas

invento, sempre inventei. vejam vocês, que triste.
crianças crescem e abandonam seus amigos invisíveis. param de falar com alguém que existe apenas na imaginação delas. que não pode ser real simplesmente porque é uma criação perfeita - que pensa e fala e responde e age exatamente como elas esperam que seja. eu multipliquei os meus, feito uma ficcionista que produz personagens em série. tão logo faço um amigo, invento um pouco mais de generosidade nele. para um pretendente, o dobro de atitude. meus chefes são mais coerentes, meus pais, mais responsáveis. capricho no figurino que me parece mais adequado e visto essa gente de verdade sem que percebam. e finjo não saber o que há por baixo. mas, como a vida não é ficção minha, erro a medida, o personagem sente que aquilo não lhe cabe e a roupa rasga. acontece sempre. e sempre, nunca de vez em quando, mas sempre, me surpreendo. e aí, mesmo que eu tenha costurado com toda a minha inocência e expectativa, não dá mais jeito. a coisa se esgarça inteira. fico frustrada e emputecida com a história que eu inventei pra mim. destruo o cenário, chuto o personagem com a dor que só eu mesma podia ter também inventado. porque mais perigoso que inventar é acreditar nas invenções. talvez eu tenha que entender que as pessoas são mais parecidas comigo do que eu gostaria. que elas se confundem, mentem, esquecem, mudam de ideia e também estão aprendendo. dia desses um personagem meu, muito melhor humano que na ficção, disse uma frase que me tranquilizou a alma: "você vai se reinventar, querida".

quinta-feira, 4 de junho de 2009

O porre que eu adoraria ter tomado



- Vamos nos falar de vez em quando, vai? Preciso tomar minhas doses de você.

Ela ouviu com receio. Tinha pensado no próprio vício também. Entre a abstinência dolorosa e a embriaguez ilusória, o que poderia oferecer a ele depois daquela despedida tão delicada? Combinou que a relação dali em diante seria uma taça de vinho de dias em dias. Nada com alto teor alcóolico que terminasse em ressaca.

Mas ela jura que, naquele momento, quis acreditar que amor pudesse se liquefazer. Teria entornado, com gosto, a garrafa inteira no gargalo. Havia sido linda, aquela história. E seria mais fácil, bêbada, tropeçar nas certezas (e ignorar os soluços). Há algum tempo, percebeu que sua maior sede não é do outro. É de si mesma.