segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Ainda erguendo a minha viga mestre

Dois posts atrás, contei que, para escrever uma reportagem sobre a Ong Um Teto Para Meu País, participaria de um mutirão no feriado. E que colocaria telhas sobre a cabeça de Dona Gilmara sob o risco de descer da estrutura e não encontrar meu próprio chão. Sorte que lá também aprendi a serrar vigas e pregar tábuas. Enquanto reconstruo algumas ideias, compartilho um recado a minha mãe. Psicóloga competente e mulher incrível, de quem tento sempre roubar um pouco mais de sensibilidade e atenção nesse processo tão delicado que é ouvir - e entender - o outro.

"costumo dizer, mãe, que não saio imune das vidas que visito como repórter. parte do mistério está registrado no meu gravador. outra, esta muito maior, no meu coração. num barraquinho de suzano, deitada com olhos esbugalhados de medo dos ratos e dos pernilongos em bando, apalpei uma noite daquela realidade que jamais deveria existir. e, chacoalhada na alma, construí com os voluntários um novo lar para dona gilmara e mais 11 familiares. martelei estruturas, levantei paredes, serrei telhas e as ajeitei com carinho. olhei para aqueles jovens sujos de lama até a testa e desvendei a motivação deles num feriado chuvoso, tudo para erguer o teto de desconhecidos necessitados. uma experiência visceral. e veja só que coisa estranha. a repórter que eu escolhi ser tem muito a ensinar à jovem adulta aqui. preciso vestir mais a pele do outro para entendê-lo de verdade".

Conto mais sobre o projeto, os voluntários e os beneficiados na edição de fevereiro da Época São Paulo.

domingo, 8 de novembro de 2009

Bomba vermelho-sangue

Do blog Amor e Ponto, de Cristiana Guerra:

Casca.
Ele trazia o coração envolto numa casca. De modo que nem parecia haver ali uma batida. Ele era um morto-vivo, sorrindo para o mundo uma alegria comprada em loja. Um dia ele topou com ela. Ela, sim, trazia o seu coração nu, carne viva, pulsando convicto. E foi assim que os dois corações nunca se encontraram. Um dia a casca do coração dele se quebrou e quem ficou nu foi ele, diante do que sentia. Pegou seu próprio coração com as mãos, quente feito brasa, e o jogava para um lado e para o outro sem saber o que fazer com aquele amor que lhe queimava a pele. Quando olhou aquela bomba vermelho-sangue, o coração dela explodiu em sorriso. Mas o tempo passou de novo e o que ela viu crescer não foi amor: foi outra casca. Outra dura e forte a esconder mais uma vez aquele músculo frágil, a ponto de nem se ouvirem mais as batidas. E o coração que ela não mais vê, não mais sente. E o dela ganha paz de novo, como quem viveu um sonho breve e acordou.

sábado, 7 de novembro de 2009

Um Teto a mais - um chão a menos

Bem-vindo ao Jardim Maitê, diz uma placa impregnada de pó vermelho. Na rua principal, um porco chafurda com o nariz a lama que secou há pouco. Para cada dois dias de sol, uma chuva aumenta o nível do brejo onde vive Dona Gilmara. Tira o sono dos sapos e das doze pessoas que dividem o terreno com eles, sobre um barraco de 3mx4m feito de restos. De madeirites apodrecidas, de portas abandonadas, de telhas quebradas, de dignidade. Não há geladeira, televisão, pia, banheiro. Só três camas (uma de casal e duas de solteiro), um pequeno armário remendado, um sofazinho, um fogão e uma gaiola. E o passarinho, sem dúvidas, tem mais espaço para circular.


Este não é o barraco 3mX4m de Gilmara, mas o dela não é lá muito melhor que isso aqui.

A luz chega por uma gambiarra. Água fica em baldes para banho e para dar conta de diluir as necessidades fisiológicas. Ratos ali, segundo Dona Gilmara, botam medo nos gatos e os pernilongos passeiam pelas frestas, lanchando as bochechas redondas das crianças. Se chove, ninguém dorme. O brejo alaga o barraco e todos sobem nas camas como se pudessem se proteger de um naufrágio. Conheci nesta manhã de sábado Dona Gilmara para uma reportagem sobre a Ong que construirá, daqui a duas semanas, casas emergenciais para algumas famílias da comunidade. Na periferia da periferia. Perguntei se poderia dormir ali antes do mutirão. Ela me olhou incrédula. "Não ronco, juro". Seu riso cheio de espaços no lugar dos dentes garantiu qualquer décimo de metro quadrado à futura hóspede. Gilmara ainda nem ganhou um teto, mas sua sobrevivência já tirou meu chão.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Sonho a gente sonha

Pesadelo de encharcar o peito já me rendeu insônia e olheiras várias vezes. Sonho, nunca.
Até esses dias. Sonhei uma felicidade tão plena que só podia ser vivida nas profundezas do meu inconsciente.

É por isso que ando rejeitando bocejos e cílios pesados. Meia noite: decido que nada pode ser mais urgente que lavar a louça, esfregar o chão do banheiro, reorganizar os copos no armário da cozinha. Me esquivo do meu próprio sono. Prefiro não dormir.

Hoje recorri à Raca, minha maracugina em forma de amiga querida:
- Tá foda. Faço o que com esse sonho?
- Sonho a gente sonha, Nath. É nele que a gente vive o que escolheu não viver aqui, no mundo real.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Olhos de Ressaca

Gabriel diz que ela tinha olhos de ressaca, feito os da Capitu de Machado de Assis. Achava a coisa mais linda em Vera. Vidrado, foi arrastado para a imensidão dentro dela. Quando se conheceram em Belo Horizonte, eram vizinhos separados apenas por um quintal. Tinham 14 e 15 anos. No início de 2009, pouco antes de festejarem bodas de diamante, Camilo me convidou para conhecê-los. A família queria eternizar a história também em um livro, que tivemos dois meses para escrever. Num final de semana na fazenda deles em Minas Gerais, quando nos encontramos todos, mais me impressionou o não-dito. Por ser surpresa para o casal, não poderia existir uma entrevista. Observamos. Muito me impressionou como, na intimidade dos dois, palavras são coadjuvantes. É na fundura do olhar que eles se comunicam. Amor à primeira vista que se transformou em amor disposto à enxergar o outro sempre - e minuciosamente. Nas páginas de "Vera e Gabriel: 60 quilates", o texto sequer disfarça nosso fascínio diante de algo que, pelo menos para mim, ainda é coisa de outro mundo. Como explicamos na orelha do livro:

"Vera e Gabriel: 60 quilates é uma história real. Mas poderia não ser. Alinhavada ao longo de seis décadas de casamento - quase sete de namoro -, a trajetória desses dois poderia ter sido forjada por um romancista. Não o foi por acidente. Ou porque a vida, às vezes, se antecipa à poesia. Vera e Gabriel estão juntos desde o início dos anos 40, quando eram vizinhos. E porque o destino já havia os aproximado, teimaram de ficar assim para sempre. Namoraram no cinema, nos bailes do Minas Tênis Clube, em longos passeios na Praça da Liberdade. Aprenderam a dobras esquinas (e as irmãs de Vera) por um pouco de privacidade e se casaram em 20 de abril de 1949. Sete filhos, dezoito netos e nove bisnetos depois, Vera e Gabriel ainda passeiam de mãos dadas. Romance que vira romance, o amor desses dois nasceu para estar em um livro, do tipo que inspira o leitor ao mesmo tempo em que subverte os limites entre realidade e ficção."

Na mesma viagem à fazenda, uma das netas de Vera e Gabriel perambulava para todo canto gravando movimentos corriqueiros e depoimentos com lembranças dos dois. Petra Costa captou mais que imagens em sua câmera. No filme "Olhos de Ressaca", premiado como melhor curta-metragem do Festival do Rio, é impossível não sentir a alma delicada desse amor. Aqui, o trailler. No Porta-Curtas, em breve, deve estar disponível na íntegra.


E o lindo trecho de Machado de Assis, declamado por Gabriel no curta:

"Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios."

domingo, 27 de setembro de 2009

Fire needs air

Esther Perel, uma das terapeutas de casal mais famosas dos EUA, respondeu deste jeito a minha primeira pergunta:

- Você diz que cada vez mais atende em seu consultório casais jovens (com 20 e 30 anos) em relacionamentos sólidos. Eles se amam muito e são cúmplices, mas estão angustiados porque perderam o desejo pelo parceiro. Por que isso acontece?

- Fogo precisa de ar. Desejo precisa de espaço, distanciamento. Intimidade não garante bom sexo.

Anotei em letras maiúsculas no meu bloquinho. Fiz um círculo em volta. Uma seta. E nem precisava: ainda estou com a resposta feito mantra na minha cabeça. Tenho escutado de muitas amigas coisas como "amo muito ele, mas fico me esquivando pra não fazer sexo" ou "não lembro a última vez em que transamos" ou "não sinto mais tesão, só que gosto demais dele para terminar". Não estou falando de mulheres com 50 anos. Elas estão com seus vinte e poucos, em relacionamentos que não ultrapassam 5 anos. E o que vivem é muito mais comum do que imaginam - elas e todos nós.

Entrevistei a autora de "Sexo no Cativeiro" (sim, cativeiro = matrimônio) ontem, depois de ouvi-la 9 horas em um workshop para psicólogos brasileiros. É possível que saia uma matéria na revista Marie Claire de novembro. Coloco aqui um vídeo dela (em inglês) e trechos traduzidos por mim livremente.



"O que aconteceu com essa geração pós-revolução sexual? Eles têm contracepção em suas mãos, ideias democráticas em suas cabeças,a permissão para fazer quanto sexo quiserem, mas não tem desejo para fazê-lo. Por que? Porque eles vieram com a expectativa de que satisfação sexual deveria ser parte de uma relação totalmente plena (***). Se no passado nós tínhamos vergonha porque fazíamos sexo, agora temos vergonha porque não fazemos."

"Perguntei a uma colega: se eles se amam, se importam um com o outro, por que não querem estar juntos fisicamente? Ela disse: porque as pessoas não querem transar no cativeiro. Eles estão perto demais. Pensei que algumas vezes não é um pouco de intimidade que atrapalha o desejo, mas o excesso de proximidade. Os casais sempre falam do paradoxo entre domesticidade e desejo sexual. Por um lado, queremos segurança, estabilidade. Por outro, queremos mistério, imprevisilidade, risco."

(***) Esther explica que por "relação totalmente plena" entenda-se que as pessoas buscam alguém que preencha todas as suas lacunas: emocionais, sexuais, econômicas. Ou seja, não basta ter um bom namorado. Ele tem que ser o amante incrível, o amigo mais confiável, o colo de mãe, o provedor, etc. Para a terapeuta, criar conexões com outras pessoas é fundamental para evitar cobranças excessivas que geram frustrações sem fim. Em outras palavras: tenha a sua autonomia, recorra às suas amigas, família, etc.

"O parceiro não deve ser o melhor amigo", diz. Cultivar segredos e individualidade não é só um direito à privacidade como também um combustível para o amor. "Se temos que saber tudo é porque não confiamos. Confiar é tolerar o desconhecido". É esse "não achar que conhece o outro totalmente" que desperta a curiosidade, o medo de perder e, consequentemente, o desejo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ele não deixa o molho respingar. E eu não seguro mais a bandeja

Aos 90 anos, Seu Antônio implorou ao patrão da cantina italiana:
- Me deixa continuar trabalhando? Pelo menos aos domingos...
Ele jura que nunca deixou o molho vermelho das massas respingar em cliente nenhum.
E quer continuar carregando a bandeja, a despeito dos braços trêmulos. Fui entender depois porque ele não vai para casa descansar ao lado da esposa: é como se ali também equilibrasse a própria vida.

Saiu na Época SP

E eu ia postar sobre o meu cansaço depois de duas semanas trabalhando na madrugada (das 23h às 6h30), sobre a rotina virada pelo avesso e sobre as férias que nunca chegam...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Estrondo, sal e calmaria

Acordei de um cochilo leve quando uma onda empurrou com força a areia fofa de Boiçucanga. Ouvi a espuma se recolhendo e um novo estrondo invadiu o quarto, a quinze metros da praia. Com saudade chacoalhada, enfiei um agasalho e fui sentar debaixo de uma árvore, a tempo de ver a chuva chegando - e os turistas fugindo no final de tarde. Incrível o que o vai e vem dessas águas provoca em mim. Olhos salgados, devo ter chamado a atenção de um rapaz, que não pediu licença para me fazer companhia silenciosa por alguns minutos.

- Você só pode ser caiçara também.
- Oi?
- Moro aqui há 14 anos. Rodrigo. Prazer.
- Oi, Nathalia. Mas por que vc diz isso?
- Porque a gente percebe quem tem essa intimidade com o mar. Também fico com essa cara quando venho aqui pra esvaziar a cabeça. De onde você é?
- Santos.
- Não mora mais lá, não, né?
- Não.
- Tá explicado. Veio recuperar as energias...



Rodrigo tem 28 anos. Construiu com o tio a pousada em que me hospedava. Uma graça, no estilo simples das casinhas dos pescadores. Ele já foi um, aliás. E trabalhou na peixaria ali ao lado também. Quis saber como era a vida em São Paulo, o que eu tinha achado da polêmica do diploma de jornalista (?!). Frequentador da igreja Bola de Neve, é um cara de voz mansa e olhar atento. Tanto que reparou na baita mordida de borrachudo que levei no tornozelo.

- É, os bichos pegam mesmo.
- Nossa, e como coça!
- Entra no mar. Ele cura tudo. Sério: isso aí é moleza.

Cresci com essa história de que não há ferida que o mar não seque. E o remédio milagroso ficava do outro lado da rua da minha casa. Ou emoldurado pela janela da sala. No parapeito dela, inspirada por aquela misteriosa imensidão, me debrucei em sonhos e devaneios. Logo embaixo, na rede ali pendurada, também balancei dores e angústias no ritmo das ondas mais violentas. Até dormir para despertar calmaria. Se a vida estava empatada, era banho de mar para se livrar do mau olhado. Para agradecer uma conquista, mergulho gelado (e inclusive noturno). Caiçara sabe que é quase uma religião mesmo. Lembrei que há muito eu não me abençoava...

O sol ardido veio só no dia seguinte. Não quis perder tempo: convidei minhas feridas para algumas braçadas. Saímos todas cicatrizadas.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O homem que escrevia de trás para frente

Conheci um paraibano que, depois de 70 anos longe das salas de aula, voltou a estudar. Aos 84, acaba de alcançar o diploma do ensino médio. Mas não se dá por satisfeito: se prepara para o vestibular de direito. Aqui, um trecho da reportagem que estou escrevendo (com nomes trocados) e minha profunda admiração.


***
Caderno e coragem debaixo do braço, Clodair Pereira da Silva atravessou os corredores da Escola Estadual Sampaio Almeida, em São Paulo. Entrou na sala repleta de carteiras, escolhendo para si a mais próxima da lousa – a determinação e a catarata nos dois olhos exigiam que assim fosse. Sob o bigode preto salpicado pelo branco da idade, cumprimentou com um sorriso a professora cinqüenta e tantos anos mais nova. Enquanto os colegas do supletivo noturno ajeitavam-se em seus lugares, ele precisava era ajeitar o próprio acanhamento: “Eu era o mais antigo lá. Parei de estudar aos 9. Não foi fácil começar tudo de novo”. Na primeira aula, intrigou a professora de português.

- Seu Clodair, veja bem... O senhor está começando a copiar as matérias na última página do caderno. Assim vai ser uma desorganização só.

- Deixa. Faço do meu jeito – respondeu, incomodado.

Ao lembrar do episódio vivido há quatro anos, Clodair ri a ponto de fechar os olhos já pequeninos. “Quando a pessoa estuda desde criança, sabe arrumar as lições direitinho, né? Eu peguei o bonde andando”. A escrita, utilizando as páginas de trás para frente, refletia a cronologia invertida de sua vida. Octogenário, estava reaprendendo a ser o menino que a pobreza roubou da terceira série. Mas como essa é uma história longa, ele me convida a sentar na mesa da cozinha, invadida pelo chiado da panela e o cheiro do feijão. Está tão disposto naquela manhã de agosto que quase esqueço: ainda se recupera de uma cirurgia feita às pressas, duas semanas antes, por causa de uma apendicite supurada.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

E lá vem os 23 anos...



... ensinando a dar novos passos para seguir em frente sempre

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Micro literatura

Pílulas do Sem Ruído, que acompanho pelo Twitter e nas estações do metrô:

"Ela olhou pra ele. Era melhor quando era platônico".

"Já estavam há 5 horas conversando e tinham muitos assuntos em comum, mas foi no silêncio que descobriram suas incompatibilidades".

"Visivelmente desconfortável, saiu fantasiado de esperança. Foi encontrado nu ao relento, coberto de decepção".

Vai se quiser saber mais sobre o grupo e a iniciativa.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Nó de uma orelha só


É verdade: os cadarços eu ainda amarro daquele jeito. Duas orelhinhas, cruza e dá a volta por dentro. Até os dez anos, importa é que os pés estão calçados. Mas, depois disso... Eu é que desisti de usar tênis. Cansei de asfixiar sempre, daquela maneira infantil, a frustração por não conseguir executar o movimento tão óbvio. Me explicaram quinhentas milhões de vezes a arte do nó adulto. Debochando, mostrando cada etapa bem-de-va-gar-zi-nho, desenhando no papel. Daí vez ou outra eu finalmente conseguia, decorava (!) e o mestre se enchia de glória. Vã, claro. Em menos de meia dúzia de tentativas, eu esquecia. Então aposentei meus tênis. Hoje pensei no único par guardado no armário. No nó que eu não sei fazer. Porque, de vez em quando, nem todas as instruções do mundo ajudam a gente a se livrar dos mesmos erros e das velhas manias. Uma amiga disse que isso ninguém mais me ensina. "Descobre-se sozinho, numa espécie de estalo". Prometi a ela descansar o salto alto e gastar mais a sola (e os cadarços) do meu tênis.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Miudezas

Esses dias você se esgueirou nos lençóis e fugiu dos meus braços sem me despertar. Não vi, mas sei que se arrastou até o banheiro, tomou aquele banho quente demorado e fez a barba de cima para baixo. É por isso que ela cresce logo, amor - avisei milhares de vezes. Enrolado na toalha, na ponta do pé, você deve ter atravessado o quarto para pegar sua roupa meticulosamente dobrada, separada na noite anterior. Senti seu beijo quente bem abaixo da orelha, passando o nariz no meu rosto sonolento, e quis dizer o quanto estava plena por te ter perto de novo. Tá frio, não esquece o casaco - foi o que deu pra balbuciar. Você sorriu, como sempre. Afundei naquele edredon que nos faz esquecer o alarme - a vida fora do nosso universo macio. Minutos depois, encontrei sua calça de pijama largada de última hora. E, nela, meus imensos fios de cabelo. Lembrei das reclamações: não sei como eles alcançam esse lugares, vivem se enroscando em mim! Escancarei cortina e janelas para a luz entrar. Lá estava outro detalhe. O travesseiro ao lado amassado no formato da sua cabeça. Sabe, preto, o tempo e o amor redimensionam miudezas.

"a vida leva e traz / a vida faz e refaz"

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

No teu escuro, me ensina a tatear

Silvia Valentini não é cega. Convive apenas com a miopia, sem saber precisar quantos são os graus que desembaçam qualquer imagem à distância: "deve fazer uns seis anos que não troco estes óculos". Queria ter dito a essa artista plástica que abandonasse o par de lentes pendurados sobre o nariz. Parecem lhe servir apenas como acessório, tamanha a clareza da sua visão de mundo e seu foco no outro. Silvia é idealizadora do Boletim Ponto a Ponto, um periódico mensal que compila reportagens de jornais e revistas transcritos em braille. O calhamaço de páginas brancas e totalmente pontilhadas leva conhecimento a deficientes visuais e surdocegos, que tem pouquíssimo material atualizado disponível para leitura. Assim, milhares de pessoas têm compreendido melhor o que acontece no mundo que também lhes pertence. Descobrem, encantados, o que é o tal do pré-sal, como funciona um vulcão ou que forma possui um carrapato. Escrevi sobre o projeto na edição de setembro da revista Época SP, em breve nas bancas. Foi através dela que conheci Sandra Taioli Cassares, outra mulher de abraçar a alma.



Era quinta-feira de feriado quando toquei a campainha do apartamento dessa assistente social aposentada. "Oi, querida, pode entrar", convidou, estendendo a mão e me puxando para um abraço. Não podia ter me guiado melhor naquela situação. Muitas vezes, ajo feito quem tateia no escuro diante de portadores de alguma deficiência: espero ela me tocar ou não? vou na frente ou sigo?

Percebi que Sandra conversava comigo bem perto, como se quisesse enxergar com outros sentidos a minha altura, o jeito como eu gesticulava, a minha expressão de jovem repórter. Não tenho ideia se percebeu o quanto me surpreendi com uma bobagem: a casa era absolutamente arrumadinha, normal, com tudo combinando. Sofás, mesinha de centro, televisão, samambaia pendurada sobre a janela. Através dela, vi o céu da Mooca feito um tapete azul. "Obrigada por me receberem nessa manhã de feriado ensolarado", comentei. "Está sol, é? Que beleza!", respondeu o marido, me cumprimentando. A luz refletida nas paredes era só o breu costumeiro para o simpático casal. O que eles vêem é uma sensação de calor. Fechei os olhos para marcar a minha estupidez distraída.

Mas eles sequer ligaram. Andavam de um lado para outro com passos precisos, como se calculassem mentalmente a metragem da poltrona para o corredor. Talvez vejam alguns vultos e silhuetas, pensei. Nada. Sandra nasceu cega; Ronaldo ficou aos vinte anos. Ela, que foi alfabetizada em braille, surgiu com uma Reglete (régua com cavidades que formam palavras ao serem perfuradas por uma ponteira de aço). Ponto por ponto, numa habilidade invejável, escreveu meu nome completo. E tudo o que eu consegui ver foram montinhos em relevo, que não me diziam absolutamente nada, mas me encantaram os dedos. A professora segurou minha mão e tentou ensinar o beabá.

"Você pode buscar um Boletim e ler pra mim?", abusei. Afundei mais de uma hora naquele sofá com estampas irmãs das que moravam na sala da minha bisavó. Ao meu lado, com as páginas no colo, Sandra empunhava o indicador e lia as matérias que eu havia lido semanas antes no Estadão, na Veja... E que se transformaram em novidade naquelas formas miúdas. No momento em que ouvi o outro me contar o que eu não podia decifrar sozinha. Sem perder o hábito acadêmico, ela me pediu para encontrar o número de uma página qualquer. Explicou o formato dele em braille, mas logo desisti do desafio. E imaginei os dois folheando em uma enorme banca de jornais e revistas: sem um tradutor vidente por perto, as palavras e as imagens são inalcançáveis.

"Preciso ir embora!", me despedi, na esperança de que me botassem em algum canto só para observar suas rotinas. Tive vergonha de explicar que demoro para conceber certas superações. Ronaldo saltou da porta ao elevador e, certeiro, apertou o botão para mim. Disfarcei, mas não resisti a uma última olhada nos olhos dele. "Não é possível, Deus. Esse homem deve estar me vendo". Do jeito convencional, não estava, não. Mas tenho cá minhas desconfianças: como as aparências não lhes dizem nada, eles devem enxergar além.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A um homem de 50 anos

Presentes e datas comemorativas são bobagens. Era o que você costumava dizer, envolto até em um certo desdém. Completava só depois: amor e carinho se entregam ao outro todos os dias. Era isso ou algo parecido. As cinco décadas te alcançam e a minha memória é que tropeça. Eu, menos da metade de você.

Nesse dois de julho, talvez o único em que passamos separados desde o meu sempre, não te dei presente. Nem amor, nem carinho. Apenas o máximo que pude: "oi, parabéns. (...) é isso, beijo-tchau". Fosse possível, teria mandado embrulhar o perdão em caixa espaçosa, com fita vermelha e lustrosa. Mas você sabe que não é coisa para se escolher na vitrine e pagar parcelado. Bem mais complicado.

E então recolhi mais uma vez. Encaramujei minha tristeza, minha angústia e minha saudade. E você também, porque somos iguaizinhos. Fico hereditariamente doida nessas horas: quero subtrair teus genes de mim. Com os dentes. Daí percebo o quanto perderia.

Nesse aniversário atrasado, homem de 50 anos, vou te dar um tubo de cola bem tenaz. Não para recuperar os fios que já na adolescência te escaparam do couro. (Você tem seu charme sem eles, acredite). A cola deve ajudar a juntar esses caquinhos nossos por aí.

Algumas noites atrás encontrei um sob o travesseiro. Vai ver por isso sonhei com você penteando minha cabeleira enquanto eu, sentada no chão, assistia toda a novela das oito. Outro dia também dei com um outro pedaço no trilho da janela da área de serviço. Lá estava você atirando minha última chupeta, me fazendo dar adeus com a mãozinha e cair em prantos depois.

Descobri que a história da gente pode sofrer abalos estruturais mesmo. Rachar e se espatifar inteira. Improvável reconstruí-la como era. Mas nem por isso os caquinhos merecem ser expanados. Dá pra colar de novo, encaixar de um jeito irreverente. Veja só os mosaicos. Quem repara nos rejuntes? Importa é que as peças estão unidas.

sábado, 25 de julho de 2009

Quando você sorriu

Saí do bar B, quinta-feira, e percebi que esta frase da banda Pullovers não saiu de mim:

"Quando você sorriu, me repartiu em antes e depois"

Incrível como algumas palavras mergulham na gente e vão logo cutucando memórias sonolentas.

sábado, 11 de julho de 2009

Meu dia de visita na febem feminina


Gabi tem uns olhos verdes, cabelo loiro tingido até a cintura, bochechas rosadas combinando com o batom, corações pequeninos que se equilibram na ponta dos brincos. É irritantemente angelical, essas meninas de 17 que conservam o jeitinho dos 12. E pink. Era desta cor o conjunto de moletom que usava no dia em que nos encontramos na Mooca. Unidade Chiquinha Gonzaga, Fundação Casa (ou Febem feminina). Meteram-nos numa salinha administrativa: eu queria entrevistar a garota presa há 5 meses por tráfico de drogas (incentivada pelo namorado com quem morava). A repórter aqui não estava interessada no delito, mas nas cartas que ela escrevia para aliviar a solidão, a liberdade de que foi privada. Nos despedimos num hall que antecede seu mundo gradeado. Com os olhos curiosos, acompanho um carcereiro abrir o primeiro cadeado. O som que a leva de volta para um corredor onde a perco de vista me impede de ir embora. "Diretora, gostaria de conhecer a unidade toda", arrisco. "Podemos fazer um tour rapidamente", ela autoriza.

O setor das mães
Sentada bem em frente à porta da cozinha onde todas acabavam de almoçar, ela enruga a expressão quando me vê. Quero crer que é a dor provocada pelo molequinho que lhe suga o bico do peito. Outra dá uma garfada enquanto balança o carrinho do recém nascido com o pé. São sete crianças com suas mães e três grávidas. Todas com menos de 20 anos e 11 meses. Aos treze anos, uma enfrentará em breve o segundo parto. Elas dormem num quarto coletivo: para cada cama de solteiro, um berço colado. Quase nunca recebem visitas - principalmente dos pais, que não raro são "trancas" (presidiários) ou desconhecidos ou desinteressados mesmo. "E você já viu como dia de visita em presídio faz fila?", comenta uma coordenadora. "Aqui não existe isso, não". Tento interagir, sob olhares densos e amargos: "Ah, que lindo! De quem é esse corinthianinho?". Silêncio. Melhor conhecer o restante da unidade, penso, e me desculpo pela invasão.

A unidade provisória
"Para cá vêm as meninas que estão esperando julgamento. Ficam aqui até, no máximo, 45 dias", me explicam. A caminho do pátio, cruzo com duas garotas encostadas na parede. "Boa tarde, senhora", dizem. Estão aguardando: minutos depois se encontrarão com o juiz para descobrir suas penas. Uma outra, aparentando 14 anos, se encolhe no chão, apertando os joelhos contra o peito. Moradora de rua e viciada em crack, chegou há um dia. Observa (se é que é capaz de distinguir qualquer coisa com aqueles olhos vagos) as duas filas formadas no centro da quadra de cimento: sentadas com as pernas cruzadas, elas passam pelo momento de higiene. Em dupla, se dirigem a um tanque e recebem uma escova de dentes feita de um plástico bem flexível (para evitar que vire arma). Tomam banho de sol e conversam. E eu, que temia não encarar demais para não lhes dar a sensação de que estava em um zoológico analisando espécies diferentes, me senti exatamente assim. Um E.T. Nos quartos, nenhum pertence. Só beliches igualzinhos, com um cobertor e um travesseiro-folha-de-papel. Individualidade ali, nem mesmo no arrastar de chilenos que se confundem por toda parte.

A unidade permanente
Meio-dia e meia é hora de faxina na cozinha. O grupo que varre, ensaboa e lava tudo tem prestígio. "Se elas estão nessa função é porque são merecedoras de confiança", conta a diretora. L* nos cumprimenta e é apresentada. Alta e forte, a negra com o cabelo curto, colado ao couro em traças, carrega um tímido sorriso branco. Olha para as próprias mãos, os dedos que empurram cutículas. "Ela tem uma voz linda, Nathalia. Vamos, cante, L*", a autoridade incentiva. Então ela ergue o queixo e solta uma versão em português de "La Solitudine", música cantada por Laura Pausini (e também Renato Russo). Enfio o gravador no bolso da jaqueta para bater palmas, encantada com o talento da garota de 19 anos. Quando agradece e sai, pergunto pelo quê ela está pagando nesses três anos de reclusão. L* matou o filho. E ninguém sabe me explicar a causa do homicídio. Talvez nem ela mesma saiba.
Mais um breve bate papo, desta vez com M*. A única pergunta que tenho coragem de fazer, ao ouvi-la contar que sua condenação está acabando, é: "...e para onde você vai quando sair daqui?". "Vou morar na rua, me enfiar em algum abrigo. Não conheci meu pai, morava minha mãe mais minha vó. Só que as duas estão presas também", responde, plantando tantas outras inquietações em mim. Andando, percebo que chamo atenção de algumas meninas sem uniforme e desconfio ter visto cenas de ciúme. São as homossexuais, que se recusam a vestir-se de pink e, em muitos casos, "adotaram" essa opção sexual pela circunstância, pela extrema carência afetiva.

Uma hora e meia de tour, coração pesado e vontade louca de chorar, digo à diretora que tenho compromisso e preciso ir. Entro no táxi e desabo. Me dou conta de um dos tantos privilégios que tenho: posso fugir daquela realidade tão obscura e sofrida. Estou de visita. Elas, não.

terça-feira, 7 de julho de 2009

Dona Maria, sua carta e seu portão


"Essas cartas podiam vir até sem endereço", me desafia Seu Rubens, carteiro há mais de 35anos na Cidade Dutra, lá pros lados do Grajaú, extremo sul da capital paulista. "Podiam, é?", pergunto. "Pois eu garanto que não voltava umazinha pra essa central no final do dia. Conheço a casa - e a vida - de cada um desses destinatários", ele emenda.

Quem quiser saber mais sobre esse carteiro (que cultiva barriga e sorriso generosos a despeito dos 20km diários de percurso), vai ter que ler nas páginas da Época SP de agosto. Aqui eu conto sobre a Maria que o Rubens me apresentou. E o sobre o portão que ela bateu na minha cara durante a reportagem. Voltemos para o Centro de Distribuição Domiciliar.

- E dessas 1.200 cartas que o senhor deve entregar hoje, quantas são de pessoa física pra pessoa física?
- Vixe - e ele remexe nos nichos de cada CEP, bagunçando toda aquela correspondência separadinha por número - Tenho entregado só cobrança, extrato bancário e publicidade.
- Nem uma?
- Ah, achei! É do filho da Dona Maria. Tá preso, o rapaz. Faz mais de ano já.
- Seu Rubens, tem certeza? Seria uma história muito boa. Cartas representam um vínculo muito maior para quem está recluso. Me leva na casa dela?
- Só se você prometer que não vai contar que fui eu quem te contei. Porque você sabe, não sou fofoqueiro. Mas ando pelas ruas o dia todo, converso com as mesmas pessoas há tanto tempo... Acabo sabendo mesmo. Mas ela pode não gostar.
- Prometo.
...
- Dona Mariiiiiaaa! (Seguida de algumas palmas no portão) Sou eu! Carta pra senhora.

E a senhora, frágil aparência, touca na cabeça, sai sorrindo para Seu Rubens. Me estranha, mas quer logo é pegar naquele envelope branco. Checar se está ali a letra em vermelho quase infantil, tão torta e insegura sobre as linhas onde se lê "Remetente".

- Que coincidência. Estava agora mesmo escrevendo para ele porque estranhei que não tivesse chegado nada nesse mês.

Interrompo, educada, falando baixo e pisando em ovos.
- Bom dia. Sou repórter e estou acompanhando a rotina do Seu Rubens. Fiquei surpresa ao ver que, em meio a 1200 cartas que ele tem para entregar hoje, a sua era a única pessoal. Daí quis saber mais sobre essa história. É um hábito que poucas pessoas mantêm atualmente, né? Com telefone, internet...
- É. - respondeu Maria, longe de querer alimentar minhas esperanças.
- Então. Essa carta é do seu filho? Ele mora longe?
- Mora.
- E vocês não se falam muito por telefone?
- Não.
- É bom pra matar as saudades de qualquer forma, né? Mas, faz tempo que ele está fora?
- Preciso responder? Eu não quero entrar em detalhes.
- Não, claro.
- E além do mais (empurrando o portão), estou com almoço no fogo. Você me dê licença. Não quero falar sobre isso.
Dona Maria acenou agradecida apenas para Seu Rubens. Enfiou a carta no bolso do agasalho de lã, como se pudesse se esconder inteira ali, e sumiu.

A sua chuva apertou e fiquei parada naquele portão. Sem toldo, sem a história boa que eu queria escrever. Pensei em tocar a campainha e insistir. A vida DELA daria um bom molho pra MINHA matéria. Mas a vida era dela, só dela. E enquanto eu voltava pra redação pensando nisso, o fotógrafo dizia que, se fosse ele, daria um jeito de entrar, diria saber do filho preso e tentaria arrancar algum depoimento. Como se ela tivesse cometido um crime e fosse obrigada a declará-lo. Quebraria o vínculo de confiança que Seu Rubens tinha, há décadas, com aquela mulher. Desrespeitaria a dor (e por que não a vergonha) que ela deve sentir diante de algo tão íntimo.

(Imaginei uma desconhecida tocando a campainha do meu apartamento: “Oi, tudo bem? Soube que você está há meses sem falar com seu pai. O que você tem a dizer sobre isso?”).

Por causa de algumas linhas nas páginas da revista?
Prefiro deixar as minhas em branco.

domingo, 28 de junho de 2009

Uma enxurrada, por favor


Uma chuva fininha estampa minha janela tarde adentro. Os pingos magrelos caem tão discretamente que não escorrem. Ficam ali assim, a umedecer sem limpar. Resfriam o vidro e um coração esponjoso. Cada gota dá mais volume ao que lá está retido. Uma chuva fininha que, por não ter pressa, permanece preguiçosa. Pudesse alterar o clima, encomendaria uma enxurrada faxineira, dessas breves e faceiras. Que lavam e espremem tudo de uma só vez. E estedem ao sol para secar mágoas há tanto aguadas.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Minuto de silêncio

"...o diálogo que leva ao amor, que dá a cada um a vontade de se arriscar, não surge da sedução e do charme, mas da coragem de nos apresentarmos por nossas falhas, feridas e perdas".

Contardo Calligaris, na Ilustrada da Folha de S. Paulo.
Dica da Raca, visceral como eu. Aquela amiga que a gente tem vontade de levar no bolso e folhear feito o livrinho "Minuto de Sabedoria".

terça-feira, 23 de junho de 2009

Fundo de armário

O cheiro da página 169 de um livro decorado. A mancha amarela no canto de uma fotografia mal tirada. A data no verso de um bilhete-estopim. O passado empilhado, empoeirado. Entre prateleiras e gavetas esquecidas, tenho feito um resgate reconfortante. Quando a vida faz da gente uma porção de fragmentos, é nesse fundo de armário que tateamos as nossas estruturas e relembramos nosso próprio molde.

domingo, 21 de junho de 2009

Alegria

"Sei que ela está aqui. Como quando perco alguma coisa dentro da bolsa repleta de coisas e toco em todas elas, menos no que é tão urgente. Respiro fundo. Calma. Ela está aqui, tenho certeza. É simples, eu vou encontrar" - do blog Para Francisco.

Sujeito mais importante que o verbo


Ela me ligou semana passada. Queria agradecer pela delicadeza com que contei sua história. Palmira nem sabe, mas abraçou minha alma. Fiquei toda prosa. Porque quem trabalha comigo sabe o quanto eu me remexo na cadeira para escrever sobre a vida dos outros. Sou apenas uma estranha cheia de perguntas. Sempre penso no quanto esses entrevistados confiam em mim ao revelar suas memórias, suas angústias, seus sonhos, suas dores. Nesse jornalismo que eu amo, o sujeito é muito mais importante que o verbo. Por isso peso muito o que ouvi antes de registrar nas páginas da revista. O amor de Palmira e seu Vladmir fazem parte da matéria de capa de junho da Época SP. Coloquei aqui(mais em http://revistaepocasp.globo.com/Revista/Epoca/SP/0,,EMI76616-15368,00-AMORES+IM+POSSIVEIS.html). Ah, lembram do que escrevi no blog enquanto buscava um casal de velhinhos no baile da terceira idade? Foi parar no site da revista também =) http://revistaepocasp.globo.com/Revista/Epoca/SP/1,,EMI77405-16207,00.html

***

Palmira nunca foi de rodopiar assim, com os olhos fechados e o sorriso aberto. Era um-dois pra cá, um-dois pra lá, e só. Seguiu, na vida, uma coreografia sem margem para improvisos: menina de Itaporanga, semiárido da Paraíba com 23 mil habitantes, casou-se logo com o primeiro namorado, aos 15 anos. Antes de completar 17, tinha o mais velho dos quatro filhos. A costureira mudou-se para São Paulo com o marido, ao lado de quem viveu por quase quatro décadas. Quando veio a separação, esperavam dela que desligasse a música. Mas a mulher colocou o salto alto, perfumou-se toda e saiu para dançar.

“Tem gente que se separa, aposenta ou fica viúvo e acha que a vida acabou. A minha começou agora: bendita terceira idade!”, diz, aos 75 anos, a avó de dez netos. A sensação de liberdade é tanta que, em um dos bailes da Sociedade Beneficente União Fraterna, na Lapa, entregou ela mesma uma bandeirinha à senhora que rodopiava com Vladmir. Palmira roubou o pé de valsa para si e deixou a outra fazendo vento pelo salão. “Eu frequentava há muitos anos aquele baile, mas essa foi a primeira vez que nos vimos”, afirma o concorrido cavalheiro de 73 anos. Quando a orquestra encerrou a noite, o advogado aposentado, viúvo e pai de quatro filhos se ofereceu para levá-la em casa, na Freguesia do Ó. No vermelho de um semáforo, inauguraram os beijos e engataram o namoro.

Estivesse ainda em sua cidade natal ou em alguma do interior, “diriam que perdeu a compostura”, afinal, onde já se viu namorar nessa idade? Ela estaria fadada a ouvir as canções sem se levantar da cadeira ao lado de um par. Mas, como os dois vivem na metrópole e seus amigos recém-apaixonados também têm rugas e cabelos brancos, assumiram o desejo de não ficar sós. Há 13 anos, Palmira e Vladmir gastam os sapatos juntos. Elegantes e cúmplices, chamam atenção entre os cerca de 400 frequentadores dos bailes de quarta-feira do Sesc Pompeia: cantarolam com a banda, exibem um repertório de passos qua vai do xote à valsa, dão a volta na pista inteirinha. “Adoro quando ela fica leve, feito aquelas bonecas de pano”, diz ele, ajeitando o bigode.

Saem de lá suados e felizes. E seguem cada um para a sua casa, “para preservar o romance e sentir saudade”. Desde que os filhos formaram as próprias famílias, Palmira e Vladmir moram sozinhos. O casal não quis enxergar tristeza no silêncio dos cômodos vazios, então festejou a independência. “Às vezes eu durmo lá, às vezes ele vem ficar comigo”, diz Palmira. Vez ou outra, enquanto ela borda as encomendas de toalhas, ele sai da frente do computador, aumenta o som e a convida para dançar – ou fazer amor. Mas eles não convivem o tempo todo de rosto colado. “É claro que tem coisa em mim que ele não gosta. E vice-versa. Mas evitamos nos magoar: se um dos dois não abre mão, não funciona”, diz ela. Vladmir completa que se encontraram depois de muitas decepções: “O desafio é não temer que o passado aconteça de novo”.

Eles não usam uma, mas três alianças no dedo. Tudo para dar volume ao comprometimento e avisar às solteiras do baile – bem mais numerosas que os homens – que não atrapalhem o programa, realizado duas vezes por semana. São ciumentos confessos, sim, como tantos adolescentes. A diferença é que esbanjam um fôlego que só essa maturidade bem resolvida pode ter: “Eu não sou velha, sou idosa. O velho acorda e acha que está mais perto da morte. O idoso dá graças a Deus por mais um dia de vida”, diz Palmira.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Meio vazio ou Meio cheio?


- Por que você insiste em ver o copo meio vazio?
Coisas (e gente) pela metade sempre me despertaram desconfiança.
Ninguém fica meio apaixonado, meio chateado. Nem mente ou erra mais ou menos.
Ou seca ou transborda. Ou derruba o líquido ou entorna. Ou fode ou sai de cima.
Insistiram que minha visão andava muito pessimista, envenenada, radical.
Que a porra do copo estava meio cheio.
Peguei o troço, examinei o conteúdo, medi a diferença entre o fundo e a borda.
Fui convencida, mais pela fé que pelas evidências físicas.
- Você tem razão. O copo está meio cheio.
Confesso que a constatação foi um alívio: logo eu, tão pesada.
Saí por aí com um sorriso de orelha a orelha.
Então olho mais uma vez para a minha descoberta...
Não há mais nada lá dentro.
Nem gota, resquício algum.
- Eu esvaziei o copo, Nath.
- Quê?

***
Daí que comentaram comigo, dias depois desse post:

"É sempre bom lembrar
Que um copo vazio
Está cheio de ar"

(Copo Vazio, Gilberto Gil)

sábado, 13 de junho de 2009

Invenções minhas

invento, sempre inventei. vejam vocês, que triste.
crianças crescem e abandonam seus amigos invisíveis. param de falar com alguém que existe apenas na imaginação delas. que não pode ser real simplesmente porque é uma criação perfeita - que pensa e fala e responde e age exatamente como elas esperam que seja. eu multipliquei os meus, feito uma ficcionista que produz personagens em série. tão logo faço um amigo, invento um pouco mais de generosidade nele. para um pretendente, o dobro de atitude. meus chefes são mais coerentes, meus pais, mais responsáveis. capricho no figurino que me parece mais adequado e visto essa gente de verdade sem que percebam. e finjo não saber o que há por baixo. mas, como a vida não é ficção minha, erro a medida, o personagem sente que aquilo não lhe cabe e a roupa rasga. acontece sempre. e sempre, nunca de vez em quando, mas sempre, me surpreendo. e aí, mesmo que eu tenha costurado com toda a minha inocência e expectativa, não dá mais jeito. a coisa se esgarça inteira. fico frustrada e emputecida com a história que eu inventei pra mim. destruo o cenário, chuto o personagem com a dor que só eu mesma podia ter também inventado. porque mais perigoso que inventar é acreditar nas invenções. talvez eu tenha que entender que as pessoas são mais parecidas comigo do que eu gostaria. que elas se confundem, mentem, esquecem, mudam de ideia e também estão aprendendo. dia desses um personagem meu, muito melhor humano que na ficção, disse uma frase que me tranquilizou a alma: "você vai se reinventar, querida".

quinta-feira, 4 de junho de 2009

O porre que eu adoraria ter tomado



- Vamos nos falar de vez em quando, vai? Preciso tomar minhas doses de você.

Ela ouviu com receio. Tinha pensado no próprio vício também. Entre a abstinência dolorosa e a embriaguez ilusória, o que poderia oferecer a ele depois daquela despedida tão delicada? Combinou que a relação dali em diante seria uma taça de vinho de dias em dias. Nada com alto teor alcóolico que terminasse em ressaca.

Mas ela jura que, naquele momento, quis acreditar que amor pudesse se liquefazer. Teria entornado, com gosto, a garrafa inteira no gargalo. Havia sido linda, aquela história. E seria mais fácil, bêbada, tropeçar nas certezas (e ignorar os soluços). Há algum tempo, percebeu que sua maior sede não é do outro. É de si mesma.

terça-feira, 26 de maio de 2009

Quando Chicó quis falar - e eu não soube ouvir

Ele tinha um pouco de Chicó, o personagem de Matheus Nachtergaele em O Auto da compadecida. Falava rápido, de um jeito cantado e caricato. Encenava tudo com gestos grandes, cambaleando lá e cá por causa da cachaça que entornara horas antes. A diferença do Chicó morador de rua com a criação de Ariano Suassuna é que os causos daquele não pareciam mentira. Homem franzino, Piauli (nome pelo qual é conhecido nas andanças)escorregou do Piauí, ainda adolescente, quando os avôs que o criavam morreram. "Fui procurar o meu destino que pra aqueles lados num tava, não", diz. Hoje dorme embaixo do banco onde eu estava sentada, em pleno Vale do Anhangabaú, para assistir à peça de um escritor sem teto (do qual falarei em breve). Piauli vive com a regata e a bermuda que lhe cobrem o corpo, mais um chinelo estilo Rider com imensos buracos na sola. E um sabonete. O banho é ali, sem qualquer privacidade: forra o chão com papelão, pega água de chafariz e lava o quanto dá. E nunca dá pra lavar o suficiente, ele mesmo analisa e mostra os dedos dos pés e das mãos, pretos. Pergunto por que não recorre aos albergues da cidade, onde pode ao menos ter um teto das 17h às 6h. "A mocinha sabe o que é dormir com 1.200 pessoas, entre bêbados, ladrões, loucos? Olha isso aqui". Piauli nem precisava apontar: a cicatriz é larga o bastante - atravessa do canto esquerdo do lábio ao meio do crânio.
E enquanto ele explica mais essa história, depois de uma hora e meia de conversa, o interrompo:
- Mas, Piauli...
- Que que é isso? Eu nem sou letrado, tá ligado? Mas sei que é falta de educação não deixar os outros terminar de falar. Tem que saber ouvir, po!
Eu e minha cara de tacho ficamos por ali mais uns 20 min. Imagine o significado de dar ouvidos a quem raramente pode ser escutado.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Margem e "fundura"

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos" - Fernando Pessoa

Margens são sempre seguras. Nelas, os limites ficam tangíveis. A gente vai até onde os pés alcançam. E voltamos em duas braçadas se uma correnteza insiste em nos carregar pra algum lugar. Há quem prefira estar pertinho da terra firme e passe a vida a especular a largura e a "fundura" de tudo que existe até à margem de lá. Pensa que está seguro, mas se afoga em frustrações. Eu resolvi boiar. Ainda que descubra, travessias depois, que margens são melhores não porque seguras. Mas por serem apenas o contorno de todas as possibilidades.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Uma História Severina

Foi Dia das Mães ontem. E hoje consigo emprestado da jornalista Eliane Brum o curta realizado por ela e Debora Diniz em 2005. Infelizmente não consegui colocar aqui os 23 minutos de filme, nem sei como indicar para quem tiver interesse. Vai o trailer mesmo, que já vale a reflexão. Deixo a sinopse porque faltam palavras:

"Severina teve seu destino alterado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Grávida de quatro meses de um feto sem cérebro, ela estava internada no hospital na mesma tarde em que o tribunal cassou a permissão para interromper a gestação. Era 20 de outubro de 2004. Plantadora de brócolis de Chã Grande, Pernambuco, mulher de Rosivaldo e mãe de Walmir, Severina peregrina por fóruns e maternidades por três meses. Pede que lhe abreviem o sofrimento. O documentário testemunha essa trajetória severina - conta o longo dia seguinte que os ministros não acompanharam".



Que Justiça é essa que obriga uma mulher a sentir por meses um coração que só baterá enquanto estiver dentro dela? Que lhe condena a sofrer as dores do parto de um filho morto e lhe oferece, em vez de suporte e compaixão, o atestado de óbito? Isso eu não pretendo entender.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Eu não sei rodopiar

- Se eu te chamasse para dançar, moça, você me acharia um velho tarado?
- Não. Eu diria que o senhor tem é muita iniciativa.
- Então dança comigo?
- Não posso. Estou a trabalho. Mas agradeço a gentileza.
- Hm. Que pena. (...) Você deve ser dessas difíceis de conduzir mesmo.
- Na dança?
- Também.


Assim começou nossa prosa, ignorando toda e qualquer apresentação. Estávamos às margens do salão central, numa segunda-feira de baile na Sociedade Beneficente União Fraterna, bairro da Lapa. Minha missão, de caderno e gravador em punho, era encontrar um casal de idosos que houvesse começado a namorar nesta fase da vida. Talvez depois de anos de viuvez, divórcio, solidão...

Me postei por alguns minutos no topo da escada da entrada, coberta com um tapete vermelho para ser digna de receber quem tanto se preparou para a ocasião. Sobem senhoras com brincos reluzentes e pesados a lhes esticar orelhas, cílios postícios, vestidos longos com fendas maiores ainda. Degrau por degrau, também chegam senhores de camisa engomadinha, barba feita no capricho, perfumados para uma semana inteira.

Enquanto estranho todas aquelas cabeças brancas e aqueles sorrisos enrrugados bailando num fôlego que eu nunca tive, eles me olham com o canto dos olhos. Eu, uma ninfeta com idade para ser bisneta de alguns. "Ela não devia estar na cama a uma hora dessas?". Eu, de jeans. "Que absurdo! Nem se arruma para vir dançar". Eu, desacompanhada. "Ah, tadinha. Será que veio sozinha mesmo?". Foi como se eu sentisse esses cochichos desfilando das mesas até meus ouvidos. Ri por dentro. Bem pouco. Fui interrompida por esse senhor - e por um inesperado convite.

Teria inventado um jeito simpático de sair daquela situação. Mas não quis. E o tal velhinho me pegou pelo braço, como quem pede atenção: "Tá vendo aquela senhora de roxo? Olha como ela está preocupada em dançar bonito, em fazer o passo certinho. E olha como os ombros dela estão duros, como o parceiro está tenso e acuado". Então meu desconhecido apontou para outro casal: "Esses sabem dançar".

De rostos colados, meio sem ritmo e trombando vez ou outra nos vizinhos dançarinos, eles improvisavam uma coreografia qualquer. Um-dois pra cá, um-dois pra lá. As mãos do negro bigodudo, pousadas sobre as voluptuosas nádegas da senhorinha, comandavam o balanço e saíam de lá apenas pra rodopiá-la. "Você vê como ela gira de olhos fechados? Quem nunca se deixa levar perde o melhor da música - e da vida". Cavalheiro, ele se despediu com um sorriso e emendou, já a caminho de uma mesa: "Ainda bem que aquela doçurinha ali não está trabalhando agora. Adoro essa música".

terça-feira, 28 de abril de 2009

Manual (sujeito a alterações indefinidamente)

Aja com naturalidade se eu gritar, chorar e depois pedir colo. Se acontecer de novo, me olhe nos olhos e berre. O mais alto que conseguir.
Detesto bagunça. Mas desarruma minha cama, não lava a louça, larga tua meia desvirada no corredor.
Adoro que você fique. Então levanta e vai embora de vez em quando, deixa a falta ocupar teu lugar na cama.
Dispenso pizza de frango com catupiry. Faz com que eu coma ao menos um pedaço.
Vou te achar horrível de amarelo. Apareça um dia assim vestido apenas para eu ter certeza. Ou me surpreenda.
Direi coisas grosseiras e impulsivas. Nem sempre compreenda: mande à merda e me ignore.
Quero ter o controle. Não se engane: é só para você tirá-lo de mim.
Contrarie, desafie, desconfie, cutuque...
Desse rebuliço que eu preciso.
Para sossegar.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Como derreter corações (em um minuto e meio)

Porque eu dei a minha risada mais gostosa ao ver esse vídeo.



"And anytime you feel the pain hey jude refrain
dont carry the world upon your shoulders"

sábado, 18 de abril de 2009

Um bom domingo à tarde






.bel.e.o.meu.dedão.do.pé.pintado.
.nossa.infinita.preguiça.
...

Felicidade: a nossa e a do outro

Este texto me foi encaminhado por uma amiga. Pelo que entendi, é de autoria da jornalista Débora Bresser, do Jornal da Tarde. Achei verdadeiro: a gente teima em jogar a responsabilidade da nossa felicidade no outro - e se responsabiliza pela dele também. Vejam se concordam.

- Você vai me fazer feliz?

- Não, não vou. Não sou deus, nem prozac. Sou só um ser humano tentando desgraçadamente ser feliz. Vou fazer o possível para que você seja feliz a meu lado tanto quanto isso puder ser compatível com a minha própria felicidade. Mas não, não vou fazer nada além disso. Até porque, não há nada a ser feito acerca da your private own felicidade.
A sua felicidade é sua mesmo: é você quem faz todo dia, um pouquinho, com dor, com dificuldade, superando os seus monstros, as suas limitações, mudando o que dá pra ser mudado, aceitando e justificando condizentemente o que não dá, rezando, se psicanalisando, correndo, comendo chocolate, meditando, crescendo, sofrendo, perdendo, ganhando, ficando melhor do jeito que você consegue.
Dá um trabalho doido e é solitário, é difícil. Ser feliz não é para qualquer um, não. É bom que se diga. Muito mais fácil é pedir ao outro que nos faça feliz. Fazê-lo prometer e jurar que vai cumprir e chorar porque o coitado não deu conta do recado – que, frise-se – é impossível mesmo. A felicidade (a sua, a minha, a nossa) é um processo de cada um e não sou eu que vai te fazer feliz, assim como você não me fez, não me faz, nem me fará. Eu sou feliz quando estou com você porque aqui no meu processo você faz parte da minha felicidade. Somos um cada um e pode ser que lá pelas tantas a minha felicidade já não caminhe a seu lado, que eu já não seja mais aquilo que você precisa/quer para ser parte da sua vida feliz ou vice-versa.
Pode ser que o que você precise para ser feliz seja achar alguém que pense ser possível ser responsável pela sua felicidade e que lhe prometa isso, por mais impossível que isso seja. Contudo, o que eu posso lhe prometer é tão somente ser sua cúmplice, co-autora e partícipe, mas jamais responsável. Sei que a cada dia que eu te olhar e te ver feliz, vou me sentir parte disso e me orgulhar. Mas se eu tiver que caminhar com o peso de uma responsabilidade impossível, vou me fazer infeliz. Estarei aqui, sim, enquanto tu também fizeres parte da minha felicidade. Para enfrentar os monstros, sim. Para estar triste, também. Para chorar contigo quando der vontade, para te ajudar em tudo que estiver a meu alcance. Mas só enquanto isso for felicidade, pra ti e pra mim.

sexta-feira, 10 de abril de 2009

O escafandrista e a minha falta de ar

Tenho tido tanta urgência de mergulhar na vida que esqueço o tubo de oxigênio. Talvez por isso meu bisavô escafandrista venha aparecendo nos meus sonhos. Como se quisesse dizer que o ar uma hora acaba - e é preciso recuar. Não conheci esse homem que, ainda muito jovem, meteu-se num navio na Polônia e foi viver oceano adentro. Oceano a fundo. Tivesse oportunidade, teria feito muitas perguntas a ele (que disso eu entendo). Ousaria saber se no silêncio de todas as coisas a gente escuta melhor. Se ele tinha mais medo do perigo lá embaixo ou do tédio em terra firme. Se era possível ter bravura sem deixar de ser doce. Esse homem de olhos claros e pose de galã sorri pra mim dos retratos em preto e branco. Eternos nos corredores da minha avó, sua filha. É ela quem me conta que esse Teodor doido por desbravar as profundezas do mundo atracou no Brasil de Conceição. O rapaz, fora d'água, perdeu o fôlego pela soteropolitana. Por ter perdido o fôlego, lançou a âncora e por ali ficou. Deixou a noiva canadense a ver navios. Deixou os pais e os irmãos a olhar pra sempre o horizonte quando a saudade apertasse. Avisou por carta, em palavras doloridas e congestionadas de consoantes, que havia se apaixonado. E isso era mais que suficiente. Teodor e Conceição se amaram por um bom tempo sem falar a mesma língua: entendiam o que o outro queria dizer. Juntos, tiveram três filhos. E netos e bisnetos (geração na qual me incluo). Hoje, gostaria ainda de lhe pedir emprestados o escafandro e o pé de pato. Pra mergulhar mais fundo, pra decorar cada uma das formas e das cores, apesar dos riscos. Quando o ar tiver acabado e me deixado zonza, talvez eu perceba a importância de voltar à superfície.

sexta-feira, 3 de abril de 2009

O dia em que me apaixonei por Seu Lourival

Eu amo o que faço, principalmente, pela oportunidade de conhecer pessoas como ele. Ser jornalista me permite bater na porta dessas vidas sem parecer uma doida curiosa, cheia de perguntas. E, muitas vezes, confesso, esqueço que a visita é a trabalho. Me encanto e me apego aos personagens, o que já virou motivo de chacota lá na redação da Época SP. Tudo começou com um anão motoboy que entrevistei e de quem falei semanas a fio. Mas essa é uma outra história.
Agora estou apaixonada por Seu Lourival. E foi amor à primeira lida.
Fui pautada para escrever uma pequena matéria sobre a Cooperifa, um movimento cultural criado pelo poeta Sérgio Vaz na periferia de São Paulo. Num boteco de quebrada localizado entre os bairros mais perigosos da cidade (Capão Redondo, Jardim Ângela e Piraporinha), pertinho de um cemitério em que 80% dos "moradores" foi assassinado, se recita poesia. Gente que, de cerveja em punho e pratão de toicinho e mandioca cozida na mesa, esquece o futebol e a novela na televisão. Que toda quarta-feira, às nove da noite, se aglomera em um silêncio sagrado pra ouvir POESIA de todo tipo. São cerca de duzentas pessoas - entre poetas e ouvintes respeitosos. Enquanto alguém recita uma dor de corno, um amor impossível, um desabafo de cunho social ou uma doidera qualquer, não há espaço para risos debochados e vaias. Há quem traga seus versos decorados, quem recorra a uma leitura sofrível no papel de pão, quem interprete cada palavra com alma de ator. Seja como for, a plateia incha as mãos de tanto aplaudir. Vi choro, arrepio, perplexidade, torcida. E me vi assim logo que o desajeitado Seu Lourival se postou diante do microfone. Baiano de Riacho de Santana, esse homem de 70 anos é a pérola da Cooperifa. É um poeta anarquista, sem saber que o é. Na poesia dele, rimas nem sempre são necessárias e erros de português não são crimes. Até porque, tivesse ele estudado além da quarta série, não seria desse jeito. Desde pequeno, Seu Lourival achava bonito quando ouvia repentistas no Nordeste. Aquelas palavras ajustadas a acontecer, de tempo em tempo, com sons parecidos. "E não é que de rima em rima, virei poeta, moça?", ele me avisa, pra que sua conquista não passe despercebida. Casado há 43 anos, o vigia aposentado confessa que gosta mesmo é de escrever coisas românticas. Pra mulher, Seu Lourival? "Ah, ela não liga muito, não. Mas aqui na Cooperifa a mulherada me chama de garanhão", e ri, todo safado. Meio atrapalhado e muito humilde, ele não consegue se expressar na velocidade das ideias. Tropeça nas palavras, engole raciocínios, pede calma pra pensar. Ralhado em casa e por desconhecidos, não desistiu de expressar seus sentimentos. É sábio porque escuta o coração.

Aqui, o poema que declamou no dia em que o conheci. Quis colocar exatamente do jeito que ele escreveu. Seu Lourival, é com você:


"Primeiro ti conheci despois vei amizade
Mais agora eu confeço que ti amo de verdade
Atravecei o riu Paraná num pedaço de barbante
Arisquei a minha vida por uma simpri estudante

Si eu fosse o seu professor, eu sentia emoçãu
Mais eu sou apaichonado e vou dar meu coraçãu
Eu queria que chuvesse uma chuva bem fininha
Pra molhar a sua cama pra você dormir na minha

Ela mim deu um beijo que meu corpo estremeceu
Despois de nove messe um lindo bebê nasceu
Ela mim pediu nãu beijar no portãu
Porque seu pai é cego mais os seus vizinhos nãu é cegos nãu

Eu nãu quer te perder porque minha vida fica em sofrimentos
Isto porque eu ti amo loucamente
Si eu governasse os seus olhos, eu queria que fosse assim fechado
Para abrir só para mim

Seus olhos de plata, seus lábios de porcelana
Eu beijei uma vez e sentir feliz uma semana
No cofre do pençamento eu tranquei minha paichãu
A chave da felicidade foi cair em minha mãu

Quem querer saber meu nome, dar uma volta no jardim
Pois o meu nome está escrito numa folha de alegrim
Gestaine em francês, ylôve em ynglês
Si vocês nãu intendeu
Eu ti amo em português".

sexta-feira, 27 de março de 2009

A maior covardia

Quero fugir de mim mesma. Dá?

domingo, 22 de março de 2009

Das provas mais difíceis

Ontem foi meu baile de formatura. Voltei pra casa pensando que certamente perderei o contato com 90% daqueles que fizeram parte da minha rotina nos últimos 4 anos. Vou ficar realmente triste por pelo menos 10%...

A faculdade me aplicou provas dificílimas. Não as de teoria da comunicação, metodologia científica ou planejamento gráfico. Para essas, tinha cola.

Queria Cásper. Tive que lidar com uma frustração e tanto. E, para minha surpresa, em uma semana não conseguia me imaginar naquele prédio da Paulista. O bosque da Metô era muito mais interessante.

Queria morar sozinha. Tive que lidar com uma saudade imensa de Santos, dos amigos, da família. Com o feijão que queimava, com as contas que esquecia de pagar, com os conflitos Brasil X Argentina.

Queria me identificar. Tive que lidar com gente completamente diferente: alternativos, cocotas, maníacos por futebol, nerds... E não é que, de alguma forma, a troca foi positiva. Levo alguns bons amigos e lembranças boas.

Queria ficar solteira. Tive que lidar com um sentimento que extrapolava qualquer casinho besta. Alguém que namorava, que nem me dava tanta trela, que era tudo que eu nunca quis pra mim. E era incrível mesmo assim.

Queria liberdade. Tive que lidar com uma convivência deliciosa no início, mas potencialmente estressante. Espaços que pareciam menores quando compartilhados todo santo dia. Graças à paciência e ao respeito, não nos sufocaram por inteiro.

De tudo, eu ainda não sei o que fica, o que vai, o que parecerá nunca ter acontecido. Mas é bom saber que, de um jeito ou de outro, aconteceu. Que apesar de todos os deslizes, inseguranças e surtos... eu fui aprovada.

domingo, 15 de março de 2009

Interseção


Vinícius de Morais disse que "a vida é a arte do encontro". E não é que, quando descobri a frase, ela calhou de ser assim... uma ironia afiada?


Eu encontrei Gabriel e Vera porque os dois, muito antes, lá em 1941, se descobriram vizinhos em Belo Horizonte e cismaram de continuar encontrando um ao outro. E porque os encontros foram tão maiores que os desencontros, o casal está prestes a completar bodas de diamante. A filha mais velha deles decidiu fazer uma surpresa e contratar um jornalista para escrever um livro sobre essa história que mais parece ficção. Ela encontrou o Camilo, das pessoas mais lindas que já encontrei, e me convidou para o projeto. Quando toda essa gente e essa oportunidade de aprendizado me encontraram, fui eu que me encontrei desconfiada. Como podia? Preencher páginas sobre um amor que eu nem acreditava possível enquanto meus pais colocavam um ponto final diante do juiz? Dois casais se encontravam diante de mim: um brigando pelo direito de se separar, outro pelo direito de ficar junto além da vida. Tive que encarar. Não encontrei solução melhor.

quinta-feira, 5 de março de 2009

Carta sobre a mudança

Caro novo inquilino,

vou sacodir as cortinas, esvaziar os armários, encaixotar memórias e te entregar a chave. Que a sua individualidade exija menos metro quadrado. Que andar de lado na cozinha e tomar banho sem abrir os braços não te incomodem tanto. Que a falta de ar circulando e luz natural não deixem sua rotina com cheiro de guardado. Que o vizinho de cima compre um cinzeiro e pare de decorar a tua varanda. Que o da frente faça sexo sem gemer tão alto.

Tive bons momentos por aqui, acredite. A gente se adapta às circunstâncias. Ah, desculpe a poeira acumulada no carpete. Desisti dela com o tempo - ou com a falta dele. Pode varrer todos os vestígios. Eu tenho mesmo que me mudar: preciso de espaço. E espero me redimensionar com ele. Sorte que lá existem muitas janelas. A vida pede essa arejada.

Atenciosamente,

Ex-inquilina dos 35 metros quadrados

Pauteiros da vida

Jornalista formada.

Abaixo, a homenagem que fiz aos pais na colação de grau.
Lindo ver o orgulho de todos eles. De pé no salão, num silêncio absoluto. Quis advinhar o que passaram com seus filhos até aquele momento...

"Seus filhos agora são oficialmente jornalistas. Mas o mérito dessa notícia não é só nosso, não. Vocês foram bons pauteiros. A pauta, nessa profissão, é o ponto de partida que orienta como uma reportagem que deve ser feita, que mostra ao repórter o que ele encontrará pela frente, que estimula a enxergar um acontecimento sob vários aspectos. É uma função às vezes chata porque trabalhosa e injustamente pouco valorizada. Ainda que não entendam esse conceito que aprendemos no inicio da faculdade, vocês formularam nossas pautas desde sempre. Foi assim quando escolheram nossa primeira escolinha, quando elogiaram um desenho tosco, quando disseram "não" à alguma malcriação, quando ficaram apertados para pagar a mensalidade, quando abriram mão dos próprios sonhos em benefício dos nossos.

Pauteiros dedicados 24 horas ao ofício que tanto amam, vocês passaram os recursos e as informações essenciais para que nós pudéssemos construir as nossas histórias. Sei que alguns de vocês se cobram, se culpam. Gostariam de ter proporcionado mais, ter mimado menos, ter acompanhado mais de perto ou dado mais autonomia. Mas... ainda bem que na vida e nas redações não existem fórmulas. Ainda bem que vocês ficaram em dúvida, que erraram... A pauta não pode vir toda pronta: há quem diga que repórter (pra ser bom) tem que sujar sapato, suar a camisa, aprender sozinho, passar por apuros. Pra se dar conta da própria capacidade. E até mesmo do que não é capaz de fazer sozinho. Porque a verdade, cá entre nós, é que nem sempre demos aos pauteiros o crédito merecido. A gente emplaca a reportagem, ganha manchete, recebe elogios... e esquece (ou ignora) quem deu todo o suporte para o sucesso.

É por isso que eu estou aqui. Pra dizer que hoje estamos comemorando não apenas a nossa conquista. Foi um longo trabalho em equipe, que começou antes mesmo do tempo em que precisávamos de uma mão nos ensinando a segurar o lápis. Se nos formamos agora como jornalistas, é porque vocês nos formaram para a vida. Uma faculdade diária, em tempo integral, sem direito a férias. Talvez por isso muitos de vocês pensem como esses quatro anos voaram. Claro, vocês estão há uns 20 anos vendo esse amadurecimento!

Então, a vocês, pais por natureza, por opção e amor, não bastaria um muito obrigado. Pela dignidade com que nos educaram, pelo amor incondicional, pelos esforços imensuráveis. Vocês que suportaram nosso mau-humor depois de virar a madrugada fazendo trabalhos de última hora, que acordaram mais cedo para nos dar carona, que compreenderam os plantões nos finais de semana e as angústias de quem quase desistiu desse diploma: muitíssimo obrigado é bem pouco. A todos que morreram de saudade dos filhos longe de casa, que ofereceram colo por telefone e enviaram energias positivas, todo o nosso reconhecimento.

Nós também estamos orgulhosos. Essa conquista é de vocês".

segunda-feira, 2 de março de 2009

despedidas não se adiam

- É câncer, filha. Não tem mais jeito, não. Pode demorar um dia, duas semanas ou três meses. Dificilmente passará disso.

Meu pai me avisou. Disse, nas entrelinhas, que seria bom encontrar um tempinho para me despedir do meu terceiro avô. Casado com a minha avó paterna desde que me lembro por gente, o Waldô era homem caipira, do tipo que "vai a cidade" uma vez por dia buscar jornal, pão e alguma coisa para distrair as crianças: papel de pipa, bala, lápis de cor... Desconfio que nos amava mesmo, em toda sua simplicidade.

Internado há cerca de um mês no Hospital do Câncer, dez minutos de carro da minha casa, foi vendo a vida se esvair. Lúcido. Que dor maior pode existir? A mulher companheira ao lado, os filhos, os netos, tudo acontecendo pela televisão... e falta ar para dizer o quanto gostaria de ficar.

Decidi que na quarta iria vê-lo. Não fui: perdi a hora e precisava correr para o trabalho. Tudo bem, ele pode esperar. Marquei de ir na quinta: o exame médico atrasou. Tudo bem, custava nada esperar até amanhã. Vou na sexta: preguiça de pegar o metrô. Ah, vejo ele depois do carnaval. No sábado, fui viajar para Angra dos Reis. Dessa vez, enquanto eu estava na estrada, Waldô precisou ir. E foi.

Soube da morte dele na quarta-feira de cinzas. Não quiseram me contar. Faço um esforço para lembrar quando foi a última vez que o vi, na esperança de que talvez eu tenha sido mais gentil, mais carinhosa, mais agradecida. Fui, não. Vi o Waldô pela última vez após a meia-noite do último dia de 2008. Dói pensar que talvez nunca mais o veja. Agora me pergunto como pude justificar a minha falta de tempo a alguém que não o tinha mais?

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

A vida que ninguém vê

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domingo, 15 de fevereiro de 2009

a estação que eu não vi
















Nesta última sexta, enquanto eu voltava do trabalho para casa, ele encontraria os amigos num bar. Raja, sua fiel companheira, o guiaria até a Rua Augusta.

André tem 24 anos, é casado, formado em ciências sociais, mestrando em ciências políticas pela USP. E cego. Não fosse essa última condição, passaria invisível por mim na catraca do metrô Vila Madalena.

Se ele pudesse me ver, talvez eu não o tivesse seguido pela escada rolante, pela plataforma, pelo vagão. Sentei ao lado dele e não resisti:

- Morde?, perguntei, já esticando a mão no focinho da labradora chocolate.
- Não. Mas você não deve acariciar um cão-guia quando ele está a trabalho.
- Não sabia...
- Tudo bem. É que eles não podem se distrair.

Raja, 2 anos e 7 meses, precisou de um mês de treinamento para ser os olhos de André. Hoje, acompanha todos os seus passos. Ficamos ali, conversando, e esqueci das estações. Sequer ouvi o alarme das portas e o anúncio do funcionário do metrô.

- A estação que passamos agora foi a Consolação?, ele quis saber.
- Não sei, André. Eu não vi.

Ele achou engraçado.

- Não VIU? Como você diz isso para um cego?

Estava certo: havíamos chegado na Trianon-Masp.
E eu não vi porque, de fato, ver parecia quase insignificante diante da superação dele.