domingo, 21 de junho de 2009

Sujeito mais importante que o verbo


Ela me ligou semana passada. Queria agradecer pela delicadeza com que contei sua história. Palmira nem sabe, mas abraçou minha alma. Fiquei toda prosa. Porque quem trabalha comigo sabe o quanto eu me remexo na cadeira para escrever sobre a vida dos outros. Sou apenas uma estranha cheia de perguntas. Sempre penso no quanto esses entrevistados confiam em mim ao revelar suas memórias, suas angústias, seus sonhos, suas dores. Nesse jornalismo que eu amo, o sujeito é muito mais importante que o verbo. Por isso peso muito o que ouvi antes de registrar nas páginas da revista. O amor de Palmira e seu Vladmir fazem parte da matéria de capa de junho da Época SP. Coloquei aqui(mais em http://revistaepocasp.globo.com/Revista/Epoca/SP/0,,EMI76616-15368,00-AMORES+IM+POSSIVEIS.html). Ah, lembram do que escrevi no blog enquanto buscava um casal de velhinhos no baile da terceira idade? Foi parar no site da revista também =) http://revistaepocasp.globo.com/Revista/Epoca/SP/1,,EMI77405-16207,00.html

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Palmira nunca foi de rodopiar assim, com os olhos fechados e o sorriso aberto. Era um-dois pra cá, um-dois pra lá, e só. Seguiu, na vida, uma coreografia sem margem para improvisos: menina de Itaporanga, semiárido da Paraíba com 23 mil habitantes, casou-se logo com o primeiro namorado, aos 15 anos. Antes de completar 17, tinha o mais velho dos quatro filhos. A costureira mudou-se para São Paulo com o marido, ao lado de quem viveu por quase quatro décadas. Quando veio a separação, esperavam dela que desligasse a música. Mas a mulher colocou o salto alto, perfumou-se toda e saiu para dançar.

“Tem gente que se separa, aposenta ou fica viúvo e acha que a vida acabou. A minha começou agora: bendita terceira idade!”, diz, aos 75 anos, a avó de dez netos. A sensação de liberdade é tanta que, em um dos bailes da Sociedade Beneficente União Fraterna, na Lapa, entregou ela mesma uma bandeirinha à senhora que rodopiava com Vladmir. Palmira roubou o pé de valsa para si e deixou a outra fazendo vento pelo salão. “Eu frequentava há muitos anos aquele baile, mas essa foi a primeira vez que nos vimos”, afirma o concorrido cavalheiro de 73 anos. Quando a orquestra encerrou a noite, o advogado aposentado, viúvo e pai de quatro filhos se ofereceu para levá-la em casa, na Freguesia do Ó. No vermelho de um semáforo, inauguraram os beijos e engataram o namoro.

Estivesse ainda em sua cidade natal ou em alguma do interior, “diriam que perdeu a compostura”, afinal, onde já se viu namorar nessa idade? Ela estaria fadada a ouvir as canções sem se levantar da cadeira ao lado de um par. Mas, como os dois vivem na metrópole e seus amigos recém-apaixonados também têm rugas e cabelos brancos, assumiram o desejo de não ficar sós. Há 13 anos, Palmira e Vladmir gastam os sapatos juntos. Elegantes e cúmplices, chamam atenção entre os cerca de 400 frequentadores dos bailes de quarta-feira do Sesc Pompeia: cantarolam com a banda, exibem um repertório de passos qua vai do xote à valsa, dão a volta na pista inteirinha. “Adoro quando ela fica leve, feito aquelas bonecas de pano”, diz ele, ajeitando o bigode.

Saem de lá suados e felizes. E seguem cada um para a sua casa, “para preservar o romance e sentir saudade”. Desde que os filhos formaram as próprias famílias, Palmira e Vladmir moram sozinhos. O casal não quis enxergar tristeza no silêncio dos cômodos vazios, então festejou a independência. “Às vezes eu durmo lá, às vezes ele vem ficar comigo”, diz Palmira. Vez ou outra, enquanto ela borda as encomendas de toalhas, ele sai da frente do computador, aumenta o som e a convida para dançar – ou fazer amor. Mas eles não convivem o tempo todo de rosto colado. “É claro que tem coisa em mim que ele não gosta. E vice-versa. Mas evitamos nos magoar: se um dos dois não abre mão, não funciona”, diz ela. Vladmir completa que se encontraram depois de muitas decepções: “O desafio é não temer que o passado aconteça de novo”.

Eles não usam uma, mas três alianças no dedo. Tudo para dar volume ao comprometimento e avisar às solteiras do baile – bem mais numerosas que os homens – que não atrapalhem o programa, realizado duas vezes por semana. São ciumentos confessos, sim, como tantos adolescentes. A diferença é que esbanjam um fôlego que só essa maturidade bem resolvida pode ter: “Eu não sou velha, sou idosa. O velho acorda e acha que está mais perto da morte. O idoso dá graças a Deus por mais um dia de vida”, diz Palmira.

2 comentários:

Carla disse...

"Nesse jornalismo que eu amo, o sujeito é muito mais importante que o verbo."
Como voce consegue traduzir tanto numa única frase??
te amo

Mari Desimone disse...

foi o texto que eu achei MAIS LINDO de todos da matéria! E é tudo mesmo, qnd ligam para dizer que gostaram, né?

beijos, Nathy!