terça-feira, 26 de maio de 2009

Quando Chicó quis falar - e eu não soube ouvir

Ele tinha um pouco de Chicó, o personagem de Matheus Nachtergaele em O Auto da compadecida. Falava rápido, de um jeito cantado e caricato. Encenava tudo com gestos grandes, cambaleando lá e cá por causa da cachaça que entornara horas antes. A diferença do Chicó morador de rua com a criação de Ariano Suassuna é que os causos daquele não pareciam mentira. Homem franzino, Piauli (nome pelo qual é conhecido nas andanças)escorregou do Piauí, ainda adolescente, quando os avôs que o criavam morreram. "Fui procurar o meu destino que pra aqueles lados num tava, não", diz. Hoje dorme embaixo do banco onde eu estava sentada, em pleno Vale do Anhangabaú, para assistir à peça de um escritor sem teto (do qual falarei em breve). Piauli vive com a regata e a bermuda que lhe cobrem o corpo, mais um chinelo estilo Rider com imensos buracos na sola. E um sabonete. O banho é ali, sem qualquer privacidade: forra o chão com papelão, pega água de chafariz e lava o quanto dá. E nunca dá pra lavar o suficiente, ele mesmo analisa e mostra os dedos dos pés e das mãos, pretos. Pergunto por que não recorre aos albergues da cidade, onde pode ao menos ter um teto das 17h às 6h. "A mocinha sabe o que é dormir com 1.200 pessoas, entre bêbados, ladrões, loucos? Olha isso aqui". Piauli nem precisava apontar: a cicatriz é larga o bastante - atravessa do canto esquerdo do lábio ao meio do crânio.
E enquanto ele explica mais essa história, depois de uma hora e meia de conversa, o interrompo:
- Mas, Piauli...
- Que que é isso? Eu nem sou letrado, tá ligado? Mas sei que é falta de educação não deixar os outros terminar de falar. Tem que saber ouvir, po!
Eu e minha cara de tacho ficamos por ali mais uns 20 min. Imagine o significado de dar ouvidos a quem raramente pode ser escutado.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Margem e "fundura"

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos" - Fernando Pessoa

Margens são sempre seguras. Nelas, os limites ficam tangíveis. A gente vai até onde os pés alcançam. E voltamos em duas braçadas se uma correnteza insiste em nos carregar pra algum lugar. Há quem prefira estar pertinho da terra firme e passe a vida a especular a largura e a "fundura" de tudo que existe até à margem de lá. Pensa que está seguro, mas se afoga em frustrações. Eu resolvi boiar. Ainda que descubra, travessias depois, que margens são melhores não porque seguras. Mas por serem apenas o contorno de todas as possibilidades.

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Uma História Severina

Foi Dia das Mães ontem. E hoje consigo emprestado da jornalista Eliane Brum o curta realizado por ela e Debora Diniz em 2005. Infelizmente não consegui colocar aqui os 23 minutos de filme, nem sei como indicar para quem tiver interesse. Vai o trailer mesmo, que já vale a reflexão. Deixo a sinopse porque faltam palavras:

"Severina teve seu destino alterado por uma decisão do Supremo Tribunal Federal. Grávida de quatro meses de um feto sem cérebro, ela estava internada no hospital na mesma tarde em que o tribunal cassou a permissão para interromper a gestação. Era 20 de outubro de 2004. Plantadora de brócolis de Chã Grande, Pernambuco, mulher de Rosivaldo e mãe de Walmir, Severina peregrina por fóruns e maternidades por três meses. Pede que lhe abreviem o sofrimento. O documentário testemunha essa trajetória severina - conta o longo dia seguinte que os ministros não acompanharam".



Que Justiça é essa que obriga uma mulher a sentir por meses um coração que só baterá enquanto estiver dentro dela? Que lhe condena a sofrer as dores do parto de um filho morto e lhe oferece, em vez de suporte e compaixão, o atestado de óbito? Isso eu não pretendo entender.

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Eu não sei rodopiar

- Se eu te chamasse para dançar, moça, você me acharia um velho tarado?
- Não. Eu diria que o senhor tem é muita iniciativa.
- Então dança comigo?
- Não posso. Estou a trabalho. Mas agradeço a gentileza.
- Hm. Que pena. (...) Você deve ser dessas difíceis de conduzir mesmo.
- Na dança?
- Também.


Assim começou nossa prosa, ignorando toda e qualquer apresentação. Estávamos às margens do salão central, numa segunda-feira de baile na Sociedade Beneficente União Fraterna, bairro da Lapa. Minha missão, de caderno e gravador em punho, era encontrar um casal de idosos que houvesse começado a namorar nesta fase da vida. Talvez depois de anos de viuvez, divórcio, solidão...

Me postei por alguns minutos no topo da escada da entrada, coberta com um tapete vermelho para ser digna de receber quem tanto se preparou para a ocasião. Sobem senhoras com brincos reluzentes e pesados a lhes esticar orelhas, cílios postícios, vestidos longos com fendas maiores ainda. Degrau por degrau, também chegam senhores de camisa engomadinha, barba feita no capricho, perfumados para uma semana inteira.

Enquanto estranho todas aquelas cabeças brancas e aqueles sorrisos enrrugados bailando num fôlego que eu nunca tive, eles me olham com o canto dos olhos. Eu, uma ninfeta com idade para ser bisneta de alguns. "Ela não devia estar na cama a uma hora dessas?". Eu, de jeans. "Que absurdo! Nem se arruma para vir dançar". Eu, desacompanhada. "Ah, tadinha. Será que veio sozinha mesmo?". Foi como se eu sentisse esses cochichos desfilando das mesas até meus ouvidos. Ri por dentro. Bem pouco. Fui interrompida por esse senhor - e por um inesperado convite.

Teria inventado um jeito simpático de sair daquela situação. Mas não quis. E o tal velhinho me pegou pelo braço, como quem pede atenção: "Tá vendo aquela senhora de roxo? Olha como ela está preocupada em dançar bonito, em fazer o passo certinho. E olha como os ombros dela estão duros, como o parceiro está tenso e acuado". Então meu desconhecido apontou para outro casal: "Esses sabem dançar".

De rostos colados, meio sem ritmo e trombando vez ou outra nos vizinhos dançarinos, eles improvisavam uma coreografia qualquer. Um-dois pra cá, um-dois pra lá. As mãos do negro bigodudo, pousadas sobre as voluptuosas nádegas da senhorinha, comandavam o balanço e saíam de lá apenas pra rodopiá-la. "Você vê como ela gira de olhos fechados? Quem nunca se deixa levar perde o melhor da música - e da vida". Cavalheiro, ele se despediu com um sorriso e emendou, já a caminho de uma mesa: "Ainda bem que aquela doçurinha ali não está trabalhando agora. Adoro essa música".