domingo, 27 de setembro de 2009

Fire needs air

Esther Perel, uma das terapeutas de casal mais famosas dos EUA, respondeu deste jeito a minha primeira pergunta:

- Você diz que cada vez mais atende em seu consultório casais jovens (com 20 e 30 anos) em relacionamentos sólidos. Eles se amam muito e são cúmplices, mas estão angustiados porque perderam o desejo pelo parceiro. Por que isso acontece?

- Fogo precisa de ar. Desejo precisa de espaço, distanciamento. Intimidade não garante bom sexo.

Anotei em letras maiúsculas no meu bloquinho. Fiz um círculo em volta. Uma seta. E nem precisava: ainda estou com a resposta feito mantra na minha cabeça. Tenho escutado de muitas amigas coisas como "amo muito ele, mas fico me esquivando pra não fazer sexo" ou "não lembro a última vez em que transamos" ou "não sinto mais tesão, só que gosto demais dele para terminar". Não estou falando de mulheres com 50 anos. Elas estão com seus vinte e poucos, em relacionamentos que não ultrapassam 5 anos. E o que vivem é muito mais comum do que imaginam - elas e todos nós.

Entrevistei a autora de "Sexo no Cativeiro" (sim, cativeiro = matrimônio) ontem, depois de ouvi-la 9 horas em um workshop para psicólogos brasileiros. É possível que saia uma matéria na revista Marie Claire de novembro. Coloco aqui um vídeo dela (em inglês) e trechos traduzidos por mim livremente.



"O que aconteceu com essa geração pós-revolução sexual? Eles têm contracepção em suas mãos, ideias democráticas em suas cabeças,a permissão para fazer quanto sexo quiserem, mas não tem desejo para fazê-lo. Por que? Porque eles vieram com a expectativa de que satisfação sexual deveria ser parte de uma relação totalmente plena (***). Se no passado nós tínhamos vergonha porque fazíamos sexo, agora temos vergonha porque não fazemos."

"Perguntei a uma colega: se eles se amam, se importam um com o outro, por que não querem estar juntos fisicamente? Ela disse: porque as pessoas não querem transar no cativeiro. Eles estão perto demais. Pensei que algumas vezes não é um pouco de intimidade que atrapalha o desejo, mas o excesso de proximidade. Os casais sempre falam do paradoxo entre domesticidade e desejo sexual. Por um lado, queremos segurança, estabilidade. Por outro, queremos mistério, imprevisilidade, risco."

(***) Esther explica que por "relação totalmente plena" entenda-se que as pessoas buscam alguém que preencha todas as suas lacunas: emocionais, sexuais, econômicas. Ou seja, não basta ter um bom namorado. Ele tem que ser o amante incrível, o amigo mais confiável, o colo de mãe, o provedor, etc. Para a terapeuta, criar conexões com outras pessoas é fundamental para evitar cobranças excessivas que geram frustrações sem fim. Em outras palavras: tenha a sua autonomia, recorra às suas amigas, família, etc.

"O parceiro não deve ser o melhor amigo", diz. Cultivar segredos e individualidade não é só um direito à privacidade como também um combustível para o amor. "Se temos que saber tudo é porque não confiamos. Confiar é tolerar o desconhecido". É esse "não achar que conhece o outro totalmente" que desperta a curiosidade, o medo de perder e, consequentemente, o desejo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ele não deixa o molho respingar. E eu não seguro mais a bandeja

Aos 90 anos, Seu Antônio implorou ao patrão da cantina italiana:
- Me deixa continuar trabalhando? Pelo menos aos domingos...
Ele jura que nunca deixou o molho vermelho das massas respingar em cliente nenhum.
E quer continuar carregando a bandeja, a despeito dos braços trêmulos. Fui entender depois porque ele não vai para casa descansar ao lado da esposa: é como se ali também equilibrasse a própria vida.

Saiu na Época SP

E eu ia postar sobre o meu cansaço depois de duas semanas trabalhando na madrugada (das 23h às 6h30), sobre a rotina virada pelo avesso e sobre as férias que nunca chegam...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Estrondo, sal e calmaria

Acordei de um cochilo leve quando uma onda empurrou com força a areia fofa de Boiçucanga. Ouvi a espuma se recolhendo e um novo estrondo invadiu o quarto, a quinze metros da praia. Com saudade chacoalhada, enfiei um agasalho e fui sentar debaixo de uma árvore, a tempo de ver a chuva chegando - e os turistas fugindo no final de tarde. Incrível o que o vai e vem dessas águas provoca em mim. Olhos salgados, devo ter chamado a atenção de um rapaz, que não pediu licença para me fazer companhia silenciosa por alguns minutos.

- Você só pode ser caiçara também.
- Oi?
- Moro aqui há 14 anos. Rodrigo. Prazer.
- Oi, Nathalia. Mas por que vc diz isso?
- Porque a gente percebe quem tem essa intimidade com o mar. Também fico com essa cara quando venho aqui pra esvaziar a cabeça. De onde você é?
- Santos.
- Não mora mais lá, não, né?
- Não.
- Tá explicado. Veio recuperar as energias...



Rodrigo tem 28 anos. Construiu com o tio a pousada em que me hospedava. Uma graça, no estilo simples das casinhas dos pescadores. Ele já foi um, aliás. E trabalhou na peixaria ali ao lado também. Quis saber como era a vida em São Paulo, o que eu tinha achado da polêmica do diploma de jornalista (?!). Frequentador da igreja Bola de Neve, é um cara de voz mansa e olhar atento. Tanto que reparou na baita mordida de borrachudo que levei no tornozelo.

- É, os bichos pegam mesmo.
- Nossa, e como coça!
- Entra no mar. Ele cura tudo. Sério: isso aí é moleza.

Cresci com essa história de que não há ferida que o mar não seque. E o remédio milagroso ficava do outro lado da rua da minha casa. Ou emoldurado pela janela da sala. No parapeito dela, inspirada por aquela misteriosa imensidão, me debrucei em sonhos e devaneios. Logo embaixo, na rede ali pendurada, também balancei dores e angústias no ritmo das ondas mais violentas. Até dormir para despertar calmaria. Se a vida estava empatada, era banho de mar para se livrar do mau olhado. Para agradecer uma conquista, mergulho gelado (e inclusive noturno). Caiçara sabe que é quase uma religião mesmo. Lembrei que há muito eu não me abençoava...

O sol ardido veio só no dia seguinte. Não quis perder tempo: convidei minhas feridas para algumas braçadas. Saímos todas cicatrizadas.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O homem que escrevia de trás para frente

Conheci um paraibano que, depois de 70 anos longe das salas de aula, voltou a estudar. Aos 84, acaba de alcançar o diploma do ensino médio. Mas não se dá por satisfeito: se prepara para o vestibular de direito. Aqui, um trecho da reportagem que estou escrevendo (com nomes trocados) e minha profunda admiração.


***
Caderno e coragem debaixo do braço, Clodair Pereira da Silva atravessou os corredores da Escola Estadual Sampaio Almeida, em São Paulo. Entrou na sala repleta de carteiras, escolhendo para si a mais próxima da lousa – a determinação e a catarata nos dois olhos exigiam que assim fosse. Sob o bigode preto salpicado pelo branco da idade, cumprimentou com um sorriso a professora cinqüenta e tantos anos mais nova. Enquanto os colegas do supletivo noturno ajeitavam-se em seus lugares, ele precisava era ajeitar o próprio acanhamento: “Eu era o mais antigo lá. Parei de estudar aos 9. Não foi fácil começar tudo de novo”. Na primeira aula, intrigou a professora de português.

- Seu Clodair, veja bem... O senhor está começando a copiar as matérias na última página do caderno. Assim vai ser uma desorganização só.

- Deixa. Faço do meu jeito – respondeu, incomodado.

Ao lembrar do episódio vivido há quatro anos, Clodair ri a ponto de fechar os olhos já pequeninos. “Quando a pessoa estuda desde criança, sabe arrumar as lições direitinho, né? Eu peguei o bonde andando”. A escrita, utilizando as páginas de trás para frente, refletia a cronologia invertida de sua vida. Octogenário, estava reaprendendo a ser o menino que a pobreza roubou da terceira série. Mas como essa é uma história longa, ele me convida a sentar na mesa da cozinha, invadida pelo chiado da panela e o cheiro do feijão. Está tão disposto naquela manhã de agosto que quase esqueço: ainda se recupera de uma cirurgia feita às pressas, duas semanas antes, por causa de uma apendicite supurada.