terça-feira, 1 de setembro de 2009

O homem que escrevia de trás para frente

Conheci um paraibano que, depois de 70 anos longe das salas de aula, voltou a estudar. Aos 84, acaba de alcançar o diploma do ensino médio. Mas não se dá por satisfeito: se prepara para o vestibular de direito. Aqui, um trecho da reportagem que estou escrevendo (com nomes trocados) e minha profunda admiração.


***
Caderno e coragem debaixo do braço, Clodair Pereira da Silva atravessou os corredores da Escola Estadual Sampaio Almeida, em São Paulo. Entrou na sala repleta de carteiras, escolhendo para si a mais próxima da lousa – a determinação e a catarata nos dois olhos exigiam que assim fosse. Sob o bigode preto salpicado pelo branco da idade, cumprimentou com um sorriso a professora cinqüenta e tantos anos mais nova. Enquanto os colegas do supletivo noturno ajeitavam-se em seus lugares, ele precisava era ajeitar o próprio acanhamento: “Eu era o mais antigo lá. Parei de estudar aos 9. Não foi fácil começar tudo de novo”. Na primeira aula, intrigou a professora de português.

- Seu Clodair, veja bem... O senhor está começando a copiar as matérias na última página do caderno. Assim vai ser uma desorganização só.

- Deixa. Faço do meu jeito – respondeu, incomodado.

Ao lembrar do episódio vivido há quatro anos, Clodair ri a ponto de fechar os olhos já pequeninos. “Quando a pessoa estuda desde criança, sabe arrumar as lições direitinho, né? Eu peguei o bonde andando”. A escrita, utilizando as páginas de trás para frente, refletia a cronologia invertida de sua vida. Octogenário, estava reaprendendo a ser o menino que a pobreza roubou da terceira série. Mas como essa é uma história longa, ele me convida a sentar na mesa da cozinha, invadida pelo chiado da panela e o cheiro do feijão. Está tão disposto naquela manhã de agosto que quase esqueço: ainda se recupera de uma cirurgia feita às pressas, duas semanas antes, por causa de uma apendicite supurada.

2 comentários:

Carla disse...

"A escrita, utilizando as páginas de trás para frente, refletia a cronologia invertida de sua vida. Octogenário, estava reaprendendo a ser o menino que a pobreza roubou da terceira série."
que lindo, que capacidade de interpretar significados...
amo ;)

Camilo Vannuchi disse...

A gente é que deveria deixar de ser besta e aprender mais com este sábio senhor.
Não é que a última página do caderno tem lá seus atrativos, seu charme, sua sede de palavras? E quantas vezes deixamos nossos cadernos de lado, ou mesmo os bloquinhos, sem jamais chegarmos à última folha...
Em nome dessas páginas desprezadas, analfabetas que nunca perdem a esperança de serem também letradas, penso em lançar aqui um manifesto: uma convocação para que mais pessoas sigam o exemplo de Clodair (seja qual for seu nome real) e, subvertendo a cronologia de suas vidas, reinventem na velhice a sequência de suas páginas.
Seus textos estão cada vez mais belos, enriquecidos com a saborosa sabedoria da simplicidade. Quero ler o resto.