sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Da poesia cotidiana

Ontem, enquanto caminhava na estação da LUZ, uma grávida de 17 anos entrou em trabalho de parto. Dentro do banheiro do metrô, a criança chegava ao mundo pelas mãos de Felicidade, funcionária da empresa.

http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/09/parto-de-adolescente-e-feito-dentro-de-banheiro-na-estacao-da-luz.html

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Feijão queimado e fome virtual: o domingo em que minha vó descobriu a internet

O feijão tá queimando no fogão, alguém berrou da cozinha. E ela nada. Só eu alcancei seu sorriso de menina atrevida: a panela podia virar carvão naquele almoço de domingo. Que ela não se importava – e em algum lugar devia estar escrito que tinha todo o direito. Imagine: demorou setenta anos para descobrir um computador e agora ia trocar o mouse por uma colher para refogar? Nem a (de) pau.

- Ô, vó, esse “êzinho azul” aqui é o símbolo da internet. Tá vendo? É só clicar nele.

Eu disse, apontando o ícone. Prontamente, ela seguiu meu gesto. E enfiou o indicador (que tantas vezes checou o interior de bolos saídos do forno) na tela do computador.

- Não, querida. Não é “touch screen” como esses celulares modernosos.

Percebi um rosadinho se esparramar em suas bochechas. Fiz que não vi. Oras, vovó nunca me recriminou por não saber abrir a tampa da panela de pressão ou bater clara de ovos. Guiamos juntas a tal setinha, danada por passear mais rápida que seus reflexos. É que, atrás dos óculos, seus olhos ainda se acostumam à nova paisagem. Tão rica em pequeninos detalhes, tão cheia de movimentos. E de possibilidades.



Perguntou se podíamos encontrar uma receita de pudim no site da Ana Maria Braga e se dava para espiar o “tuílton” do Luciano Huck. Quis saber se conseguia abrir o email dela naquele computador, já que a conta havia sido criada em outro. Ah, quanto havia acumulado na Nota Fiscal Paulista? Leu matérias da Folha, babados de celebridades e o blog da neta.

- Esse aqui é o Youtube, dona Kilza. Digite aí “Roberto Carlos”.
- Meu Deus! Tem 14 vídeos dele!
- Não vó. São 14 só nesta página. No total, são 349 mil vídeos.

Incrédula, ela calculou:

- Mas nem que eu assista um por dia... vixe, vou morrer e ainda vai sobrar um monte para ver, né?

Suspirava, não cabia em si. Como é que aquele mundo caberia nela? Daria um jeito, isso era certo. Algumas horas de treino e um almoço depois, vovó continuava intrigada. Digeriu o feijão, mas não as dúvidas – lembrou que novidades alimentam a alma da gente, mas também deixam um gostinho de insegurança. E então ela não se aguentou:

- Nath, uma amiga me disse que é perigoso mexer na internet. Você me ensina a matar vírus?
- Ih, vó... isso aí eu ainda tô aprendendo...


***

ps1. Uma semana mais tarde, ela me ligou para contar que já tinha feito 12 amigos no Orkut. Desliguei com o sorriso de menina atrevida que vi naquele dia. Vovó não sabe o que sua alegria significa.


ps2. Domingo passado, dei um GPS de presente ao vovô de 80 anos. Vive ganhando mais cabelinhos brancos toda vez que se perde em São Paulo. Então descemos para uma volta de carro: era preciso ensinar o funcionamento na prática. Liguei o aparelho enquanto ele dirigia. O troço foi logo berrando com ele: "Você está acima do limite de velocidade". Vovô se assustou e gargalhou. "Como ele sabe? Ô louco... Pior que a dona Kilza!"

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

De novo. E de novo.

Da Cris Guerra.

"(...)

O que eu aprendi sobre o amor, filho, é que ele é feito de faltas e presenças. E que nenhuma das duas pode faltar.

Aprendi que o amor é feito de liberdade. É como ter, todos os dias, muitas outras opções. E ainda assim fazer a mesma livre escolha.

Dessas pequenas vitórias se faz a alegria de amar e ser amado. Descobrir no olhar do outro que você foi escolhido de novo. E de novo, mais uma vez.

Também aprendi que o amor interrompido em seu auge permanece bonito para sempre. O que pode ser muito doído ou pode ser um presente.

Depende de como a gente quer guardar. Depende de como a gente quer seguir.(...)"

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Devolvam a minha concha

“Noite passada, fiz como você nunca entendeu. Apaguei a luz do abajur e me encolhi, caramujo, no canto esquerdo da cama enorme que sempre quis ter. Um desperdício para você, que vive se esparramando. Uma ironia pra mim, líder de revoluções por mais espaço e liberdade e independência e autonomia. Aquela história que a mãe repete só pode ser verdade: devo ter mesmo me sentido sufocada na barriga dela, adiantei a hora do parto com chutes tão impacientes que não houve tempo de lhe anestesiarem. Mas isso foi há mais de 23 anos. Estou falando de ontem e de um silêncio profundo.

Não teve graça, irmã. Não ouvi o ranger da tua cama vagabunda ao lado – só pra eu saber que te mexias perto. O pai não dormia no sofá da sala com os óculos apoiados no peito e a tevê ligada. Por onde é que a mãe andou arrastando suas pantufas velhas atrás de um copo d’água que não a vi? A Bel confundi com um cobertor peludo, dobrado na altura dos pés. Eu, que passei infância e adolescência odiando dividir o quarto contigo e o único com banheiro da casa com a família toda, estava plenamente sozinha em 80 metros quadrados. E, não sei se foi a sonolência, mas tive a impressão de que eram oito mil metros quadrados – tamanha a falta que vocês (juntos) me fizeram.

Tive vontade de puxar conversa no escuro como quando pequenas, no castigo, depois de tirá-los do sério. Brigávamos todas as noites, correndo aos berros e nos xingando, inconformadas por não encontrar na outra sequer meia afinidade. Enxergamos, por muito tempo, apenas as diferenças. Às vezes desconfio que nosso pai calibrava a intensidade das palmadas para que ardessem igualmente em nós duas. Não adiantava. “O meu vergão tá muuuuito maior que o seu”, eu provocava. “Lógico, tu é mais branca, tem que estar mais vermelho mesmo”, tu respondia, apoiada no travesseiro ensopado. A competição seguia até que nos percebíamos cúmplices na dor e no erro. Então bolávamos estratégias e chantagens emocionais para nos livrarmos da punição. Pela fresta da porta, alternávamos a coragem e a voz falsamente chorosa: “Paiêêê... a gente já fez amizade. Pode sair do castigo?”.

Comecei a adormecer, Mari, com uma cena curiosa na cabeça. Estávamos nós quatro trancados em algum lugar, cada um sentado numa quina. Passamos um longo tempo fungando o choro e engolindo a mágoa, sem trocar palavra. Eu esbarro no interruptor e vemos nossos vergões. Estamos todos muito, muito mais machucados. Primeiro nos acusamos, medindo e disputando o tamanho de nossas marcas. Depois descobrimos que a dor é a mesma e pedimos, uns aos outros, permissão pra sair desse castigo.

Pior é que, nesta parte, eu já devia estar sonhando”

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Porque o amor sempre bate um bolão

Estou batendo um bolão. É o que tenho dito aos colegas de redação que, com um riso contido no canto dos lábios, duvidaram que eu pudesse escrever sobre futebol. Vejam só que injustiça: muito antes de receber da minha editora uma pauta sobre as Copas do Mundo, poderia usar tampinhas de cerveja para explicar as regras do impendimento. Mas é bem verdade que não acompanho jogos e costumo esconder meu lado meio-corinthiana-meio-são-paulina. Torci bonito o nariz ao voltar de férias e receber a missão de entrevistar ídolos da seleção brasileira (cujos nomes, confesso, eu mal lembrava). Mas, ah, grata surpresa.

Aqui, eu vou contar uma história de amor.

Gylmar dos Santos Neves foi o homem solitário sob as traves na Copa do Mundo de 1958. Esguio, mãos firmes, elasticidade para dar grandes voos e bloquear as investidas contra o gol brasileiro. Depois de erguer a taça de campeão na Suécia e encontrar uma inédita euforia nacional no desembarque, o rapaz de 27 anos ganhou direito à férias. Foi para Lindóia, destino badalado da época. E se deu aquele furor no hotel: os homens assediavam o goleiro e as mulheres, o galã. Gylmar só queria saber de uma menina linda que se banhava na piscina. Observou a grande área livre, estufou o peito e preparou a coragem para o tiro de meta. Oras, se podia agarrar bolas chutadas por robustos tchecos, seria forte o sufiente para puxar conversa. Assim o fez - e ganhou alguns sorrisos. Acontece que tinha um pai libanês na marcação. "Desde quando criei filha minha para jogador de futebol?", dizia, retrógrado. Enfurecido com o ataque abusado, decidiu apelar e mandou que a família arrumasse as malas, pois estavam de partida. Gylmar e Rachel trocaram olhares e ficaram no 0 x 0 mesmo. De todo jeito, se descobriria depois, haveria um impedimento: a moça já estava prometida para outro.


Como torcida é torcida (e tira até o timão da série b), os irmãos de Rachel se mobilizaram para ajudar o namoro às escondidas. Não que achassem o amor coisa sublime - eram corinthianos fanáticos e adoraram a proximidade de um ídolo do esporte. Amistoso vai e amistoso vem, inventaram de casar. Rachel fugiu de casa às pressas e se meteu numa igreja paulistana com o namorado. Mas Gylmar era tão famoso que... imagine se, hoje,Ronaldo Fenômeno resolvesse pegar um cineminha no shopping Santa Cruz. Alguém cochichou que devia ser o tal goleiro da seleção, que comentou com outro e logo uma multidão invadia o lugar. Enquanto os dois driblavam o padre para escapar pela lateral, o rádio já anunciava que Gylmar tentava se casar naquele momento. E o libanês, em expediente na fábrica de sua propriedade, surtava de ódio. Dizem que chegou a correr para proibir a união. Os dois chegavam à outra igreja e, mais uma vez, precisavam fugir do tumuldo. Um esquema tático surreal. Trocaram alianças na terceira: GOOOOOLLLL! Em seguida, entraram num avião rumo ao Maracanã - o marido de Rachel precisava vestir as luvas.

Ela foi deserdada pelo pai e passou quase quinze anos sem ter contato com ele. Seguiu sua vida: criou dois filhos praticamente sozinha, por causa das viagens e competições de Gylmar (ele jogou 18 anos com a camisa verde-amarela). Um dia, recebeu a ligação da mãe: o pai convidara ela, o genro e os netos para um almoço. "Lembro de chegar lá com mamãe e papai", diz o filho Marcelo, "e meu avô fingir como se nada tivesse acontecido nesses anos todos. Foi um dia muito especial para nós". Naquela mesma tarde, depois de ser visto ajoelhado no quarto, rezando, o libanês faleceu. Os irmãos de Rachel, então, decidiram abrir o cofre e dar a ela o que lhe era de direito. Encontraram mais que dinheiro. Revistas, como a Cruzeiro, traziam fotos de Gylmar posando com a mulher e os filhos. E eu não posso deixar de pensar quanto amor e perdão ele também trancou naquele cofre, sem nunca ter conseguido partilhar isso com ela. Gylmar é considerado o melhor goleiro da História do futebol brasileiro, está entre os 25 "anjos barrocos" do Museu Do Futebol. Conquistou muitos títulos até se aposentar aos 36 anos; depois administrou uma concessionária de automóveis. Em 2000, ao se preparar para uma homenagem no RJ, sofreu um grave AVC. Justo quando teria mais tempo ao lado de Rachel. O senhor de 79 anos que abriu as portas de seu apartamento no Guarujá, para esta repórter, tem o lado esquerdo do corpo paralisado e dificuldade na fala. Mas seu olhar tem uma lucidez cortante, suas expressões faciais são frases inteirinhas e seu amor pela mulher parece tão imenso e perene quanto a vista do mar em sua janela.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vida de Mochileira

Temporariamente MUITO mais ocupada

www.mochileiros-nath-oda.blogspot.com

segunda-feira, 8 de março de 2010

Epitáfio: la vie en rose

No último leito do corredor, uma voz rouca canta Edith Piaf. Porque as cortinas estão fechadas, o olhar melancólico do paciente deitado dói ainda mais em mim. Os médicos e residentes ao redor da cama tem jalecos, experiência e técnica para se proteger. Trouxe apenas meu gravador e uma incrível incapacidade de lidar com a morte. O estado de Seu Roger é terminal: o tumor avançou os limites da bexiga e lhe assaltou o corpo todo. Agora alcança também o latifúndio da memória desse francês de 89 anos, que precisa assobiar alguns trechos perdidos de "La Vie en Rose". É apenas uma rotineira visita de sexta-feira, em que todos da equipe acompanham e discutem caso a caso juntos. Mas ele logo avisa que esta é, sim, uma despedida. A chefe da enfermaria de cuidados paliativos ouve em silêncio e abre um sorriso cúmplice. Então ele havia sentido o sopro final de vida. "Obrigado por não me deixar sofrer, por cuidar de mim o tempo todo", diz, com as mãos repousadas nas dela. Custo a acreditar que aquele homem sereno e sem dor está morrendo - mas choro muito por ele, engolindo soluços. (O que haveria entre as duas pontas de sua trajetória? Que histórias teria ele para me contar se tivessemos sido apresentados mais distantes de seu fim? Soube apenas que era um gentleman muito culto, adorava cerveja Baden Baden, tinha duas filhas gêmeas e conseguira escapar de soldados nazistas quando criança). Antes de deixar o quarto, esfrego meu rosto na manga do casaco e ofereço um beijo a Seu Roger. Ele confessa: "Estou feliz. Vou morrer com ela nos braços". Juro que, pertinho daqueles olhos azuis, não foi a morte que fez sentido. Mas o sentido da vida.

Dois dias depois, liguei para a médica-chefe para saber dos pacientes. Queria marcar uma foto com Seu Roger para uma matéria que estou escrevendo. Apesar de todas as evidências, a gente tende a ignorar a morte. "Tenho más notícias, querida. Ele faleceu no dia da nossa visita, poucas horas depois", disse.

"La Vie en Rose" (A Vida Cor de Rosa), Edith Piaf.



"Uma grande felicidade que toma seu lugar
Os aborrecimentos e as tristezas se apagam
Feliz, feliz até morrer"

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Colírio

Enfiou dedos nos olhos - e o pé no freio. Uma coceira inexplicável bem no meio do cruzamento. Cílio provoca acidente na Avenida Paulista, previu nas capas dos jornais, dramática. Ainda ouvia a buzina do motoboy, que desviou apressado, sem tempo sequer de levantar o capacete para mandá-la à merda. Aliviada, sorriu para o vermelho do semáforo. E ajeitou o retrovisor, doida para se livrar daquele pêlo que especulava ter se desprendido por excesso de rímel "super volume" de uma marca barata.



Foi então que ela o viu. Teria preferido ficar careca nas pálpebras. Mas cada um de seus cílios estava onde devia estar. Cortina, abrindo e fechando, o palco de um amor intruso. Passado colado na retina. Há anos não o encarava assim, nem o sentia tão perto. Dentro. Reparou que o sorriso dele continuava o mesmo: era otimista o homem que lhe pedira para ficar quando ela decidiu fugir. História cheia de desencontros, lembrou. Sinal verde - e o incômodo acelerou primeiro. Ela tateou a bolsa e, atrapalhada, abriu a caixinha do óculos escuro enquanto dirigia. Se não conseguia esfregar de uma vez aquele incômodo dali, pelo menos não seria obrigada a vê-lo refletido nos espelhos. Aumentou o som, ridicularizando sua nostalgia. Atrevido, um cantor dizia "não se afobe, não" e ela piscava com mais força. Trabalhou doze horas seguidas em frente ao computador,vesga de cansaço - de dez em dez minutos percorria os quadriláteros do teto com o olhar, na esperança de surpreendê-lo distraído e sacudí-lo de si. Voltou pra casa com a janela do carro aberta, apoiando seu desespero num cigarro. Ele estava em tudo que ela via. Estacionou na vaga apertada e resolveu se vingar ali mesmo. O marido arrumava a mesa do jantar, com seu filho no colo: melhor não deixar vestígios. Na garagem silenciosa, chorou, chorou, chorou como nunca. Sem derramar uma única lágrima. Até afogar o homem que não podia caber nela. Na manhã seguinte, esvaziou um pote de colírio nos olhos negros. Só pra ter certeza.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Para ler em dois segundos.

"Liberdade na vida é ter um amor para se prender"
- Fabrício Carpinejar