sábado, 12 de maio de 2012

o vídeo

Por Inara Chayamiti

terça-feira, 24 de abril de 2012

"Sim"



Preta,

Eu sempre acreditei que um dia iria casar com a minha melhor amiga. Nas últimas semanas, o que mais ouvi das pessoas foi: "você está ansioso com o casamento?" E eu respondia: "não". De todas as decisões que tomei, pedi-la em casamento foi a mais serena e racional. Afinal, eu sempre soube que um dia...  iria casar com a minha melhor amiga.

Eu sempre acreditei que amor e amizade são sentimentos que caminham lado a lado. Tive alguns amores e tenho muitas amizades. Mas nunca havia encontrado em ninguém as duas coisas. Difícil saber qual dos dois, em nossa relação, veio primeiro. Arriscaria dizer: foi parceria à primeira vista e amor construído com o tempo. Afinal, eu sempre acreditei que amor e amizade, independente da ordem, são sentimentos que caminham lado a lado.

Eu sempre acreditei no destino, mas também nunca duvidei da existência do acaso. Por isso, não saberia apontar o responsável pelo nosso encontro. Gosto de dividir a culpa entre os dois - e também entre os nossos amigos de faculdade. Foi o acaso que me levou a São Bernardo, ou o destino que me trouxe uma caiçara santista? Não sei. Não importa. Afinal, eu sempre acreditei no destino e no acaso.

Eu sempre imaginei construir uma família tão bonita quanto a que eu cresci, em Interlagos, na casa dos meus pais. E a possibilidade nunca me pareceu tão real quanto ao seu lado. Porque família, Nathy, é aquela que escolhemos para estar ao nosso lado - pode parecer clichê, mas são aqueles com quem compartilham bons e maus momentos.  Eu, Nathy, escolhi dividi-los com você, minha parceira.

Eu sempre me imaginei dizendo isso: "eu vou te amar na alegria e na tristeza, na saúde e na doença". Mas nunca concordei com a parte do: “até que a morte os separem”. E ainda bem que você também não, Nathy. Eu te desejo livre, AMOR,  feliz e realizada. Eu a quero assim, para que estar comigo seja uma escolha, como é, e nunca uma obrigação. Afinal, até agora, foram nossas escolhas que promoveram o nosso encontro.

E é por isso, AMOR, que reunimos tantas pessoas queridas aqui hoje: para reafirmarmos a nossa escolha. Eu, apesar de não parecer, estou tranquilo: lembra, eu sempre soube que um dia casaria com a minha melhor amiga. Você não é só a minha melhor parceira, PRETA. É a minha escolha. Eu te amo. Quer casar comigo?
***


Preto,

Pouco mais de um ano atrás, eu deixei um recado com batom no espelho do banheiro enquanto você dormia e saí. Ainda sonolento, diante da pia, leu o seguinte: “Você está olhando para o homem da minha vida”. E a sua primeira reação foi “será que sou eu mesmo?”.

Há sete anos, você era apenas um japonês tímido e cabeçudo que entrou atrasado no primeiro dia de aula na faculdade de jornalismo. Não foi amor à primeira vista, definitivamente. Você namorava, eu queria curtir solteira essa nova fase da vida. Mas as nossas carteiras nas salas teimavam em se aproximar, estendendo cochichos, risadas e confissões. Em dois meses, você já não estava mais perto de mim – estava dentro. Derrapamos muito no começo dessa história que não parecia ter futuro algum: dos beijos desajustados à incompatibilidade de gênios. Com o tempo, aprendi a desconfiar das primeiras impressões, a construir uma relação em outras bases. Não com a fúria das paixões, mas com lucidez e maturidade. Fomos nos encaixando devagar, só que em definitivo. Porque amor não é olhar para o outro e enxergar só aquilo que a gente gostaria que fosse verdade. É ter a coragem de desvendar cada defeito, mania e diferença. Naquela manhã, deixei você na cama com o pijama mais desgrenhado e um ronco qualquer, mas levantei com uma serenidade profunda e inédita: “é ele”.

É lindo olhar perceber o que há de você em mim – e vice-versa. Uma transformação por convivência, não por imposição. As trocas que geraram um equilíbrio natural. Essa mulher mais calma e plena. Esse homem mais desperto e aberto. Há um ano e meio, encaramos o desafio de viver sob o mesmo teto. E quem convive com a gente sabe que nunca estivemos tão apaixonados, nem mesmo nos primeiros meses de namoro. É por isso que olho para o futuro com otimismo, não com medo. Confio que, ao contrário dos casais fogo-de-palha, cada dia vai superar o anterior em cumplicidade, carinho e admiração. Quando eu estiver povoada de rugas e ainda rabugenta, quero te ouvir me chamando de “véia”... desmontando meu mau-humor com alguma graça barata e infalível. Enquanto tudo o que eu conhecia de amor era peso, você me botou asas. Leve e livre, eu te escolho novamente todos os dias, ignorando qualquer outra opção.

O maior e mais importante contrato não foi aquele assinado no cartório, não é esse diante das pessoas que amamos. O verdadeiro contrato de casamento, Fê, é aquele que firmamos todas as noites, quando enroscamos nossos pés debaixo do cobertor e grudamos testa com testa. E é esse que vamos rever de tempos em tempos, fazendo os ajustes necessários. Virão dias de tédio, cansaço, irritação. As tentações tendem a se multiplicar. Essa é a má notícia: a de que é impossível ser feliz o tempo todo e para sempre. Então, se eu puder pedir uma única benção seria “a capacidade perene de nos reinventarmos”. Que as nathalias das próximas décadas continuem amantes e amadas dos felipes do futuro. Que a gente volte a se apaixonar de novo, muitas vezes, de formas lindamente diferentes. Agora nós dois somos uma família. E pode olhar para esses olhos boiando de alegria. Eles estão refletindo a mesma coisa que te escrevi naquele espelho com batom: “Você é o homem da minha vida”.


quinta-feira, 15 de março de 2012

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Como a Aids entrou na minha vida – e por que eu sempre me lembro dela

Escutei pela primeira vez a palavra “Aids” na sala da minha casa. Uma prima adolescente passava férias em Santos com uma amiga. Elas se arrumavam para uma balada quando minha mãe, psicóloga, as chamou para uma conversa. Tinha nas mãos uma banana e uma camisinha. Perguntadeira que só, fui me aproximando e quis entender por que ela vestia a fruta com aquela roupa de plástico e falava sobre umas tais DSTs (doenças sexualmente transmissíveis). Achei a aula improvisada tão genial que alguns meses depois resolvi falar sobre o assunto em um trabalho da disciplina de Ciências. Detalhe: eu estava na quinta série, não tinha mais que onze anos de idade, e a escola era de freiras.


Minha mãe me ajudou a montar as cartolinas e descolou caixas de camisinha. A ideia era impressionar, distribuindo-as para a classe. Lembro até hoje da cara de espanto da professora e dos risinhos maliciosos dos meus amigos. Na saída para o recreio, dezenas de bexigas de camisinha sobrevoavam o pátio católico. Fui parar na diretoria e escapei de uma suspensão assim: “Tia, eu não tenho vergonha do que fiz. Minha mãe vê gente morrer todos os dias por causa dessa doença, sabia?” Eu cresci e minha mãe continuou no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), dando diagnóstico e apoio a quem se descobriu HIV positivo.

Há 19 anos ela faz isso, o que me enche de orgulho e de curiosidade pelas histórias cotidianas. Não foram raras as vezes em que a vi chegar arrasada do trabalho. Um dia chegou com alguns docinhos em casa. “Fizemos uma festa no ambulatório. O bebê da G* não é soropositivo!” Esse episódio completou dez anos. Hoje, no Dia da Luta Mundial contra a Aids, liguei para essa paciente que minha mãe acompanhou tão de perto. Dona de casa, ela está com 40 anos e mora na Baixada Santista. Prefiro deixar que ela mesma conte sua história:

“Tinha 30 anos e trabalhava em uma creche quando descobri que estava grávida do meu quarto filho. Havia pouco tempo que tinha feito as pazes com o meu marido: ficamos casados por sete anos, nos separamos por seis meses e voltamos. Fomos ao posto de saúde para fazer o pré-natal. Então me pediram para refazer um exame de sangue por conta de uma “alteração”. Não sabia que era o teste de HIV, mas achei estranho.
Pegamos o resultado e meu marido leu o diagnóstico: POSITIVO. Entramos em desespero porque já tínhamos uma ideia do que aquilo significava. Perdi o chão, era como se a minha vida acabasse ali. Eu me sentia um lixo, tinha nojo de mim. Fomos encaminhados ao CTA para que ele fizesse o teste também. Deu negativo. Só aí descobri que tinha pegado o vírus do homem com quem me relacionei no período em que estávamos separados. O filho era do meu marido, mas o vírus era de outra pessoa.

Sua mãe me ouviu e me aconselhou com dignidade e respeito. Sem esse acolhimento, garanto que não estaria aqui para dar esse depoimento. Eu só pensava que o nosso bebê poderia ser infectado por um erro que cometi. Ele chorou muito, mas ficou do meu lado. Tive tanto medo que me rejeitasse! Precisei tomar vários remédios, passei mal durante toda a gestação, tive parto normal mas não pude amamentar. O leite poderia infectá-lo, isso se ele tivesse conseguido se safar do vírus. Os testes de HIV dele deram positivo por um ano, pois eu tinha transmitido anticorpos. Até que veio o aguardado resultado negativo de L* e foi uma festa!

Hoje ele tem dez anos, mas nem desconfia do risco que correu. Aliás, meu marido é a única pessoa que sabe que tenho Aids. Hoje, tenho uma vida relativamente normal. No início, cheguei a ficar quatro meses sem sexo porque temia infectá-lo. Os grilos passaram com o tempo: usamos todos os tipos e sabores de camisinhas. Este ano deixei de tomar o coquetel por conta própria. Estava cansada. Perdi 50 quilos em nove meses e agora estou me recuperando. O que eu diria para alguém que faz sexo sem camisinha? Nenhum momento de prazer vale mais que a vida. As consequências são duras demais e não há como voltar atrás”.

Entre 1980 e junho de 2011, 608.230 pessoas foram infectadas com o vírus da Aids no Brasil. Em São Paulo, só no ano de 2010, a doença matou 9 pessoas por dia. Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, melhores serão o tratamento e a qualidade de vida. Os testes são gratuitos e sigilosos nos CTAs de todo o país.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Ao amor da minha vida - ou o que eu tenho para te dizer depois de um ano morando juntos



As portas dos armários estavam escancaradas, feito o medo que você não podia disfarçar. Eu havia espanado a poeira na noite anterior e deixado as janelas abertas para você entrar de vez na minha vida. Na casa que, então, seria nossa. Já morávamos juntos, no mínimo, quatro vezes por semana. Mas não dividíamos decisões nem contas nem espaços. Vez em quando, você se esparramava numa suíte só sua na casa dos seus pais e eu saboreava algum livro, horas a fio, em silêncio. Namoramos cinco anos e pouco assim. E foi muito bom – até ficar insuficiente.

Você não queria mais ir embora e eu não queria que você fosse. Lembro daquela cena de novo: sentado na beirada da cama, você olhava para as malas trazidas de Interlagos. As roupas milimetricamente ajeitadas pareciam implorar para serem levadas de volta. Era mais confortável e cômodo lá, onde eram lavadas e amaciadas e passadas e penduradas com capricho de avó. Quem abriria mão de um mimo desses? Eu também temi perder a minha independência. Um ano depois, enquanto refogo a cebola para o arroz hoje livre do alho pelo seu paladar, vejo você tirar da máquina umas cuecas desgrenhadas e sem o branco alvejante de antes. Você pesca uma calcinha minha e assobia com cara de safado ao estendê-la. Fico amarrotada de tanto rir e penso que casamento também é feito dessas pequenas alegrias cotidianas.

Desse jeito com que você aumenta o som às dez da noite, abre uma cerveja gelada e coloca amendoins na minha boca porque eu fico irritada cozinhando com fome – principalmente depois de um dia de trabalho. E você sabe disso antes que eu precise falar. Aprendemos a reconhecer no outro a menor expressão de cansaço, frustração, raiva. Damos uma garfada na salada e contamos sobre o dia nas redações. Antes da sobremesa, já comentamos sobre o vídeo mais engraçado da internet, a notícia absurda, o futuro do personagem na novela, os rumos do Timão num campeonato qualquer. Saio alimentada dessas conversas rotineiras, deliciosas porque reafirmam a nossa cumplicidade. Você deita na cama e escorrega o braço pelas minhas costas, me trazendo para o seu peito fresquinho, ainda com cheiro de sabonete. E você sempre diz: “passei o dia inteiro esperando por isso, preta”.

Alguns dias adormeço em minutos, você liga o videogame e passa a madrugada na companhia de uns jogadores virtuais. Noutros, nos enroscamos e bagunçamos os lençóis até mais tarde. Acordo invariavelmente remelenta, descabelada e com bafo. Você, a alguns centímetros de mim, diz que sou a coisa mais linda desse mundo e eu finjo que acredito. Repara quando tiro três pelos da sobrancelha, chama meus dedos do pé de “uvinha” quando pintados de escuro, beija minha nuca enquanto escovo os dentes, abre a porta do carro mesmo debaixo de chuva. Anda atrás dos meus pés descalços pedindo que bote os chinelos, fecha as cortinas enquanto passeio distraída e seminua, volta para casa no meio do caminho porque esqueci a chave na portaria e acabei trancada do lado de dentro. Eu cheiro a pinta da sua barriga em sinal de “bom dia” todas as manhãs, faço uma dancinha quando você chega em casa, fico parada na porta do banheiro para te ouvir cantando sob o chuveiro. Odeio quando você erra um caminho, quando fica estressado no trânsito e desconta em mim, quando gagueja ao contar uma mentira, quando, por causa da timidez, acaba parecendo arrogante.

Temos muitas piadas internas, né, Claudionor? Me assusta dizendo que está com dor porque levou um golpe de ar da geladeira vazia e se irrita com o meu vai-vem desordenado entre os corredores do supermercado ("parece um motoboy maluco, cortando todo mundo!"). Quando eu fico de mau-humor porque Interlagos é mais longe que a Conchinchina, você vira ator e me chama de mulher ingrata, acusa que o bairro me deu dois amores da minha vida: você e a bel, nossa filhota canina. “E você, Nathalia, o que deu a Interlagos?” É piada velha, mas eu gargalho sempre. Se surto por algum motivo besta, você abre a janela do carro e diz que deve estar faltando oxigênio no meu cérebro. Eu rio de novo. É espontaneamente bem-humorado e generoso, não se acha dono da verdade nem possui tom professoral. Hoje erro menos porque valorizo mais. Não há jeito de brigar com você, mas eu tento com afinco às vezes. Você respeita (e é adorado) pelos meus amigos homens, entende que as vivências passadas propiciaram o nosso encontro.

Há quem prefira paixão incendiária, imprevisível.
Eu só quero a sorte do nosso amor tranquilo.
Para sempre.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O dia em que me descobri cega

De todas as alegrias proporcionadas pela profissão que escolhi, a melhor delas é poder visitar universos que me são desconhecidos. E perguntar e me intrometer – acho que escolhi o jornalismo só para tê-lo como desculpa, caso achassem a minha curiosidade inconveniente. Melhor ainda quando consigo vestir a pele do outro. Por alguns dias, horas, instantes. Fiz isso na semana passada, durante a primeira aula prática de uma turma muito especial da Fundação Dorina Nowill, instituição filantrópica para deficientes visuais (confira o vídeo).

http://youtu.be/KZSyvikORG8

Desde agosto, os dez alunos do curso de Avaliação Olfativa, cegos ou com baixa visão (menos de 30% da capacidade de enxergar), estão sendo preparados para o mercado de trabalho. Eles poderão atuar como especialistas em perfumaria, área em que o Brasil é líder mundial no quesito consumo. Ao término de um ano e meio, serão capazes de identificar os ingredientes que compõe uma fragrância e dizer se ela é agradável ou não. Assim como um enólogo é capaz de reconhecer sabores em um determinado vinho e criticá-lo.

Na quinta-feira passada, a turma foi levada pela professora Renata Ashcar para o mercado de flores do Largo do Arouche e o Mercado Municipal de São Paulo, ambos no Centro. Eu estava lá, doida para viver aquela experiência também. Me aproximei de uma japonesinha tímida, de 17 anos, sorridente depois de descobrir o perfume de uma angélica e ouvir da professora que ele sempre foi ligado à sensualidade. “Se eu botar uma venda nos olhos, você me guia?”, eu disse, já tendo reparado a habilidade dela com a bengala. Marina pareceu desconcertada com a minha vontade de trocar aqueles coloridos todos que ela não alcança por algumas horas monocromáticas – há cinco anos, um tumor no cerebelo lhe tirou a visão. Mas ela me estendeu o braço direito e, em seguida, tudo ficou escuro para mim.

Escuro e quase sem odor, graças a uma sinusite que entupiu minhas narinas assim que acordei naquela manhã. Lembro que logo nos estenderam um flor de cabo longo e, por mais que me esforçasse, precisei da dica de Marina para descobrir que se tratava de um cravo. “Combina com canela”, ria de mim. Desde que ficou cega, ela contou que o pai tenta apurar seu olfato, brincando de adivinhações enquanto cozinha: “coentro ou salsinha, minha filha?”. Alguém se aproximou com um vaso de hortelã e ela falou em chiclete. Depois, captei o cheiro de manjericão e me veio à cabeça um pedaço de pizza marguerita. Nos levaram a um balde com lírios e pensei em cemitério. Curioso como, sem a visão, tudo ganha outras dimensões e mais significados.

Foi difícil sair dali. Andar sem ajuda dos olhos é pisar temendo aquela pancada do dedo mindinho numa quina ou um buraco que nos leve ao chão num passo besta. Os sons mais banais são assustadores – o helicóptero que sobrevoava a região, a sirene de ambulância, alguém discutindo no telefone, a buzina que parecia ter passado “tirando uma fina” de nós. Era como se o barulho do mundo tivesse se hospedado nos meus ouvidos, aflorados como nunca. Marina tateava minha insegurança com uma delicadeza ímpar, apontando um degrau à frente e me desviando de obstáculos.

Bruna, colega de Marina no curso, fez piada: “Para-choque de cego é a testa. Todos nós odiamos orelhão – desviamos do poste que o sustenta, mas sempre batemos a cabeça na cabine!”. Todos se divertiram, mas fiquei sem graça. Só depois percebi o quanto o humor deles sobre os próprios limites consegue iluminar e trazer leveza aos dramas cotidianos. No estacionamento do Mercadão, andando por entre os carros, dei inúmeras barrigadas em espelhos retrovisores. Lá dentro, bem na entrada, ventania de fritura e pastel de bacalhau.

Mesmo sem ver, sabia que tínhamos nos tornado o centro das atenções. Sentia os olhares alheios pesando sobre os meus ombros. Ouvia pessoas comentarem, com dó, sobre a nossa condição. Tive vontade de dizer que éramos todos cegos, não surdos. Marina minimizava a minha revolta: “Relaxa, estou acostumada”. Ela, que estuda o terceiro ano de um tradicional colégio paulistano, que deve prestar vestibular para jornalismo e psicologia, que viaja para curtir aventuras como rafting e tirolesa.

Na segunda fase da aula, a professora nos posicionou ao lado de uma barraca. Tentei me concentrar, pedir ao cérebro que definisse os aromas flutuantes no ar. Era uma salada de frutas, mas o frescor das mangas se sobressaía. Uma voz grossa e simpática, nos ofereceu uma fatia de tangerina sem caroço. Mordi os gomos e decretei: “Marina, é a melhor tangerina que provei em toda a minha vida”. E ela lembrou como meu paladar devia estar sensível com a experiência. Sem saber quem estava ao redor, me dirigi ao cinegrafista: “Gabo, meu dente está sujo?”, mostrando os dentes. “Me passa um guardanapo?”, insisti. “Gabo? Tem alguém aqui?”, fiquei no vácuo.

Na degustação às cegas, seguiram-se abacaxi, pêra-nashi, pitaia, morango, ameixa… A professora de avaliação olfativa comentou que o pêssego cheirado e saboreado há pouco é muito usado pela Victoria Secrets na composição de seus cosméticos. E o cupuaçu, aquele troço azedo e gosmento que havíamos experimentado, em shampoos de marcas como Natura. Era a primeira aula prática, mas a classe têm dois encontros por semana, com quatro horas de duração cada. Depois de um ano de curso, os alunos terão seis meses de estágio na indústria Tânia Bulhões Perfumes, empresa que patrocina o curso. Renata encerrou o dia em uma barraca de especiarias e temperos, apresentando cominho, louro, pimenta etc. Os comerciantes baixavam os toldos, o expediente havia acabado.

Só então, quase três horas desde o momento em que coloquei a venda, me permiti tirá-la. Os olhos ardiam com a luz de fim de tarde que atravessava as vidraças do Mercadão. A cabeça doía. Uns curiosos espiavam a minha reação. Secretamente, tudo que eu desejava era poder tirar também a venda dos olhos de Marina. “Como você acha que eu sou?”, eu quis saber. Ela esticou os lábios e, com sua voz doce e baixinha, arriscou gentilmente: “Bonita”. Bonita é a superação de Marina e seus colegas. A iniciativa de capacitá-los para o mercado de trabalho. E isso eu espero que qualquer um, principalmente eles próprios, consigam enxergar.

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Reflexões de uma quase sem-teto (ou como meu prédio torto voltou ao prumo)

Era uma casa muito engraçada, a minha. Porque não foi feita com muito esmero, na década de 1960, deu para entortar. Naquela época, os engenheiros ignoraram que o solo de Santos é um dos piores do mundo e ergueram dois prédios de 17 andares, em frente à praia, apoiado em uma base rasa, argilosa e mole. Com o tempo, o condomínio Núncio Malzoni foi pendendo para o lado: alcançou um desaprumo de 2,10 metros, virando atração turística na cidade. Eu morava no prédio mais torto de Santos. Cresci com essa referência e com os pedidos de amigos durante o recreio, num misto de curiosidade e zombação: “Me leva para conhecer seu apartamento?”

Enquanto eu realizava um tour pela minha casa, no 11 andar, listava as bizarrices que me eram tão normais e familiares. Tinha até uma bolinha separada na sala para mostrar que, ao ser colocada no chão, ela invariavelmente rolava. Mostrava a água que empoçava no box do chuveiro, na banheira e nas pias. O quadro que cismava em ficar desalinhado. As portas que batiam quando não a segurávamos. E contava que o morador de cima tinha um relógio de pêndulo que quebrava direto, que minha mãe dormia de “ponta-cabeça” na cama para não sentir a pressão do desaprumo, a bisavó tinha tonturas quando andava por ali e etc, etc, etc. Por um período, cogitei cobrar ingresso. Papai não deixou: achou que seria abusivo.

Viver em prédio torto nunca foi privilégio exclusivo dos moradores vizinhos à Pinacoteca de Santos. Eram cerca de 90 edifícios na cidade com algum nível de desaprumo. Em 1995, um laudo do IPT entregue à prefeitura indicou que o recalque estava grande demais e poderia colocar em risco a vida das pessoas. Por pouco não houve uma interdição por “colapso iminente” – quase fui uma “sem-teto”. Lembro que algumas reportagens publicadas sugeriam que haveria um “efeito dominó” na orla, caso a minha casa tombasse sobre o edifício vizinho. Não bastasse o burburinho danado, o síndico Ari e o engenheiro Carlos Eduardo Maffei anunciaram que um plano para desentortar os edifícios estava em andamento.

Pioneiro, o projeto levou dois anos e meio para ser concluído. Para resumir, a idéia consistia em fazer fundações de 60 metros, onde o prédio seria apoiado em uma camada rochosa, e movimentá-lo com ajuda de macacos hidráulicos (num mecanismo parecido com a troca de pneus de um carro). Meu pai foi contratado como engenheiro responsável pela obra, que começou em meados de 1998 e custou dois milhões de reais. Na escola, quebrei o pau algumas vezes quando diziam que ele era maluco. Depois corria para chorar no banheiro, ofendida e amedrontada. Desconfio que meu pai também tenha achado que era maluco – e chorado escondido. Em janeiro de 2001, os últimos milímetros foram renivelados. Estouramos uma champagne. E transbordamos de orgulho, juntos.


Era uma vitória, mas nós ainda não sentíamos os efeitos práticos da novidade. Morávamos no bloco de trás, ainda desaprumado. E estranhos continuavam me parando no portão, cheios de perguntas e doidos para serem convidados a conhecer meu apartamento. De lá para cá, muita areia mudou de lugar em frente à nossa janela. Eu e minha irmã saímos de casa e descobrimos uma vida “reta”. Houve uma separação que abalou todas as nossas estruturas. E há duas semanas, depois de anos de negociações para reunir toda a verba necessária à segunda obra, o meu prédio deixou de ser um cartão postal às avessas. Não será mais fotografado como se fosse sua ilustre concorrente italiana, a Torre de Pisa.


O engraçado é que não me reconheço na casa em que vivi por dezoito anos. Ando esquisito, me pego olhando para o galão de água que não revela mais o desnível, seguro portas que não batem mais. Vou demorar uns meses para me adaptar. O prédio foi consertado, mas estávamos tão acostumados à antiga posição dele que o correto agora parece contraditoriamente estranho. A obra deveria incluir o alinhamento de seus moradores, arraigados aos hábitos de antes. Pensei muito no que a conclusão desse processo que durou quinze anos significa para nós, simbolicamente. Sem bases sólidas e profundas, é mesmo difícil resistir (ao tempo, à dor, à solidão...). A gente balança, entorta, enverga, quase cai. Mas, com esforço legítimo, sempre dá para voltar ao prumo.


sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Da poesia cotidiana

Ontem, enquanto caminhava na estação da LUZ, uma grávida de 17 anos entrou em trabalho de parto. Dentro do banheiro do metrô, a criança chegava ao mundo pelas mãos de Felicidade, funcionária da empresa.

http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2010/09/parto-de-adolescente-e-feito-dentro-de-banheiro-na-estacao-da-luz.html

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Feijão queimado e fome virtual: o domingo em que minha vó descobriu a internet

O feijão tá queimando no fogão, alguém berrou da cozinha. E ela nada. Só eu alcancei seu sorriso de menina atrevida: a panela podia virar carvão naquele almoço de domingo. Que ela não se importava – e em algum lugar devia estar escrito que tinha todo o direito. Imagine: demorou setenta anos para descobrir um computador e agora ia trocar o mouse por uma colher para refogar? Nem a (de) pau.

- Ô, vó, esse “êzinho azul” aqui é o símbolo da internet. Tá vendo? É só clicar nele.

Eu disse, apontando o ícone. Prontamente, ela seguiu meu gesto. E enfiou o indicador (que tantas vezes checou o interior de bolos saídos do forno) na tela do computador.

- Não, querida. Não é “touch screen” como esses celulares modernosos.

Percebi um rosadinho se esparramar em suas bochechas. Fiz que não vi. Oras, vovó nunca me recriminou por não saber abrir a tampa da panela de pressão ou bater clara de ovos. Guiamos juntas a tal setinha, danada por passear mais rápida que seus reflexos. É que, atrás dos óculos, seus olhos ainda se acostumam à nova paisagem. Tão rica em pequeninos detalhes, tão cheia de movimentos. E de possibilidades.



Perguntou se podíamos encontrar uma receita de pudim no site da Ana Maria Braga e se dava para espiar o “tuílton” do Luciano Huck. Quis saber se conseguia abrir o email dela naquele computador, já que a conta havia sido criada em outro. Ah, quanto havia acumulado na Nota Fiscal Paulista? Leu matérias da Folha, babados de celebridades e o blog da neta.

- Esse aqui é o Youtube, dona Kilza. Digite aí “Roberto Carlos”.
- Meu Deus! Tem 14 vídeos dele!
- Não vó. São 14 só nesta página. No total, são 349 mil vídeos.

Incrédula, ela calculou:

- Mas nem que eu assista um por dia... vixe, vou morrer e ainda vai sobrar um monte para ver, né?

Suspirava, não cabia em si. Como é que aquele mundo caberia nela? Daria um jeito, isso era certo. Algumas horas de treino e um almoço depois, vovó continuava intrigada. Digeriu o feijão, mas não as dúvidas – lembrou que novidades alimentam a alma da gente, mas também deixam um gostinho de insegurança. E então ela não se aguentou:

- Nath, uma amiga me disse que é perigoso mexer na internet. Você me ensina a matar vírus?
- Ih, vó... isso aí eu ainda tô aprendendo...


***

ps1. Uma semana mais tarde, ela me ligou para contar que já tinha feito 12 amigos no Orkut. Desliguei com o sorriso de menina atrevida que vi naquele dia. Vovó não sabe o que sua alegria significa.


ps2. Domingo passado, dei um GPS de presente ao vovô de 80 anos. Vive ganhando mais cabelinhos brancos toda vez que se perde em São Paulo. Então descemos para uma volta de carro: era preciso ensinar o funcionamento na prática. Liguei o aparelho enquanto ele dirigia. O troço foi logo berrando com ele: "Você está acima do limite de velocidade". Vovô se assustou e gargalhou. "Como ele sabe? Ô louco... Pior que a dona Kilza!"

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

De novo. E de novo.

Da Cris Guerra.

"(...)

O que eu aprendi sobre o amor, filho, é que ele é feito de faltas e presenças. E que nenhuma das duas pode faltar.

Aprendi que o amor é feito de liberdade. É como ter, todos os dias, muitas outras opções. E ainda assim fazer a mesma livre escolha.

Dessas pequenas vitórias se faz a alegria de amar e ser amado. Descobrir no olhar do outro que você foi escolhido de novo. E de novo, mais uma vez.

Também aprendi que o amor interrompido em seu auge permanece bonito para sempre. O que pode ser muito doído ou pode ser um presente.

Depende de como a gente quer guardar. Depende de como a gente quer seguir.(...)"

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Devolvam a minha concha

“Noite passada, fiz como você nunca entendeu. Apaguei a luz do abajur e me encolhi, caramujo, no canto esquerdo da cama enorme que sempre quis ter. Um desperdício para você, que vive se esparramando. Uma ironia pra mim, líder de revoluções por mais espaço e liberdade e independência e autonomia. Aquela história que a mãe repete só pode ser verdade: devo ter mesmo me sentido sufocada na barriga dela, adiantei a hora do parto com chutes tão impacientes que não houve tempo de lhe anestesiarem. Mas isso foi há mais de 23 anos. Estou falando de ontem e de um silêncio profundo.

Não teve graça, irmã. Não ouvi o ranger da tua cama vagabunda ao lado – só pra eu saber que te mexias perto. O pai não dormia no sofá da sala com os óculos apoiados no peito e a tevê ligada. Por onde é que a mãe andou arrastando suas pantufas velhas atrás de um copo d’água que não a vi? A Bel confundi com um cobertor peludo, dobrado na altura dos pés. Eu, que passei infância e adolescência odiando dividir o quarto contigo e o único com banheiro da casa com a família toda, estava plenamente sozinha em 80 metros quadrados. E, não sei se foi a sonolência, mas tive a impressão de que eram oito mil metros quadrados – tamanha a falta que vocês (juntos) me fizeram.

Tive vontade de puxar conversa no escuro como quando pequenas, no castigo, depois de tirá-los do sério. Brigávamos todas as noites, correndo aos berros e nos xingando, inconformadas por não encontrar na outra sequer meia afinidade. Enxergamos, por muito tempo, apenas as diferenças. Às vezes desconfio que nosso pai calibrava a intensidade das palmadas para que ardessem igualmente em nós duas. Não adiantava. “O meu vergão tá muuuuito maior que o seu”, eu provocava. “Lógico, tu é mais branca, tem que estar mais vermelho mesmo”, tu respondia, apoiada no travesseiro ensopado. A competição seguia até que nos percebíamos cúmplices na dor e no erro. Então bolávamos estratégias e chantagens emocionais para nos livrarmos da punição. Pela fresta da porta, alternávamos a coragem e a voz falsamente chorosa: “Paiêêê... a gente já fez amizade. Pode sair do castigo?”.

Comecei a adormecer, Mari, com uma cena curiosa na cabeça. Estávamos nós quatro trancados em algum lugar, cada um sentado numa quina. Passamos um longo tempo fungando o choro e engolindo a mágoa, sem trocar palavra. Eu esbarro no interruptor e vemos nossos vergões. Estamos todos muito, muito mais machucados. Primeiro nos acusamos, medindo e disputando o tamanho de nossas marcas. Depois descobrimos que a dor é a mesma e pedimos, uns aos outros, permissão pra sair desse castigo.

Pior é que, nesta parte, eu já devia estar sonhando”

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Porque o amor sempre bate um bolão

Estou batendo um bolão. É o que tenho dito aos colegas de redação que, com um riso contido no canto dos lábios, duvidaram que eu pudesse escrever sobre futebol. Vejam só que injustiça: muito antes de receber da minha editora uma pauta sobre as Copas do Mundo, poderia usar tampinhas de cerveja para explicar as regras do impendimento. Mas é bem verdade que não acompanho jogos e costumo esconder meu lado meio-corinthiana-meio-são-paulina. Torci bonito o nariz ao voltar de férias e receber a missão de entrevistar ídolos da seleção brasileira (cujos nomes, confesso, eu mal lembrava). Mas, ah, grata surpresa.

Aqui, eu vou contar uma história de amor.

Gylmar dos Santos Neves foi o homem solitário sob as traves na Copa do Mundo de 1958. Esguio, mãos firmes, elasticidade para dar grandes voos e bloquear as investidas contra o gol brasileiro. Depois de erguer a taça de campeão na Suécia e encontrar uma inédita euforia nacional no desembarque, o rapaz de 27 anos ganhou direito à férias. Foi para Lindóia, destino badalado da época. E se deu aquele furor no hotel: os homens assediavam o goleiro e as mulheres, o galã. Gylmar só queria saber de uma menina linda que se banhava na piscina. Observou a grande área livre, estufou o peito e preparou a coragem para o tiro de meta. Oras, se podia agarrar bolas chutadas por robustos tchecos, seria forte o sufiente para puxar conversa. Assim o fez - e ganhou alguns sorrisos. Acontece que tinha um pai libanês na marcação. "Desde quando criei filha minha para jogador de futebol?", dizia, retrógrado. Enfurecido com o ataque abusado, decidiu apelar e mandou que a família arrumasse as malas, pois estavam de partida. Gylmar e Rachel trocaram olhares e ficaram no 0 x 0 mesmo. De todo jeito, se descobriria depois, haveria um impedimento: a moça já estava prometida para outro.


Como torcida é torcida (e tira até o timão da série b), os irmãos de Rachel se mobilizaram para ajudar o namoro às escondidas. Não que achassem o amor coisa sublime - eram corinthianos fanáticos e adoraram a proximidade de um ídolo do esporte. Amistoso vai e amistoso vem, inventaram de casar. Rachel fugiu de casa às pressas e se meteu numa igreja paulistana com o namorado. Mas Gylmar era tão famoso que... imagine se, hoje,Ronaldo Fenômeno resolvesse pegar um cineminha no shopping Santa Cruz. Alguém cochichou que devia ser o tal goleiro da seleção, que comentou com outro e logo uma multidão invadia o lugar. Enquanto os dois driblavam o padre para escapar pela lateral, o rádio já anunciava que Gylmar tentava se casar naquele momento. E o libanês, em expediente na fábrica de sua propriedade, surtava de ódio. Dizem que chegou a correr para proibir a união. Os dois chegavam à outra igreja e, mais uma vez, precisavam fugir do tumuldo. Um esquema tático surreal. Trocaram alianças na terceira: GOOOOOLLLL! Em seguida, entraram num avião rumo ao Maracanã - o marido de Rachel precisava vestir as luvas.

Ela foi deserdada pelo pai e passou quase quinze anos sem ter contato com ele. Seguiu sua vida: criou dois filhos praticamente sozinha, por causa das viagens e competições de Gylmar (ele jogou 18 anos com a camisa verde-amarela). Um dia, recebeu a ligação da mãe: o pai convidara ela, o genro e os netos para um almoço. "Lembro de chegar lá com mamãe e papai", diz o filho Marcelo, "e meu avô fingir como se nada tivesse acontecido nesses anos todos. Foi um dia muito especial para nós". Naquela mesma tarde, depois de ser visto ajoelhado no quarto, rezando, o libanês faleceu. Os irmãos de Rachel, então, decidiram abrir o cofre e dar a ela o que lhe era de direito. Encontraram mais que dinheiro. Revistas, como a Cruzeiro, traziam fotos de Gylmar posando com a mulher e os filhos. E eu não posso deixar de pensar quanto amor e perdão ele também trancou naquele cofre, sem nunca ter conseguido partilhar isso com ela. Gylmar é considerado o melhor goleiro da História do futebol brasileiro, está entre os 25 "anjos barrocos" do Museu Do Futebol. Conquistou muitos títulos até se aposentar aos 36 anos; depois administrou uma concessionária de automóveis. Em 2000, ao se preparar para uma homenagem no RJ, sofreu um grave AVC. Justo quando teria mais tempo ao lado de Rachel. O senhor de 79 anos que abriu as portas de seu apartamento no Guarujá, para esta repórter, tem o lado esquerdo do corpo paralisado e dificuldade na fala. Mas seu olhar tem uma lucidez cortante, suas expressões faciais são frases inteirinhas e seu amor pela mulher parece tão imenso e perene quanto a vista do mar em sua janela.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Vida de Mochileira

Temporariamente MUITO mais ocupada

www.mochileiros-nath-oda.blogspot.com

segunda-feira, 8 de março de 2010

Epitáfio: la vie en rose

No último leito do corredor, uma voz rouca canta Edith Piaf. Porque as cortinas estão fechadas, o olhar melancólico do paciente deitado dói ainda mais em mim. Os médicos e residentes ao redor da cama tem jalecos, experiência e técnica para se proteger. Trouxe apenas meu gravador e uma incrível incapacidade de lidar com a morte. O estado de Seu Roger é terminal: o tumor avançou os limites da bexiga e lhe assaltou o corpo todo. Agora alcança também o latifúndio da memória desse francês de 89 anos, que precisa assobiar alguns trechos perdidos de "La Vie en Rose". É apenas uma rotineira visita de sexta-feira, em que todos da equipe acompanham e discutem caso a caso juntos. Mas ele logo avisa que esta é, sim, uma despedida. A chefe da enfermaria de cuidados paliativos ouve em silêncio e abre um sorriso cúmplice. Então ele havia sentido o sopro final de vida. "Obrigado por não me deixar sofrer, por cuidar de mim o tempo todo", diz, com as mãos repousadas nas dela. Custo a acreditar que aquele homem sereno e sem dor está morrendo - mas choro muito por ele, engolindo soluços. (O que haveria entre as duas pontas de sua trajetória? Que histórias teria ele para me contar se tivessemos sido apresentados mais distantes de seu fim? Soube apenas que era um gentleman muito culto, adorava cerveja Baden Baden, tinha duas filhas gêmeas e conseguira escapar de soldados nazistas quando criança). Antes de deixar o quarto, esfrego meu rosto na manga do casaco e ofereço um beijo a Seu Roger. Ele confessa: "Estou feliz. Vou morrer com ela nos braços". Juro que, pertinho daqueles olhos azuis, não foi a morte que fez sentido. Mas o sentido da vida.

Dois dias depois, liguei para a médica-chefe para saber dos pacientes. Queria marcar uma foto com Seu Roger para uma matéria que estou escrevendo. Apesar de todas as evidências, a gente tende a ignorar a morte. "Tenho más notícias, querida. Ele faleceu no dia da nossa visita, poucas horas depois", disse.

"La Vie en Rose" (A Vida Cor de Rosa), Edith Piaf.



"Uma grande felicidade que toma seu lugar
Os aborrecimentos e as tristezas se apagam
Feliz, feliz até morrer"

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Colírio

Enfiou dedos nos olhos - e o pé no freio. Uma coceira inexplicável bem no meio do cruzamento. Cílio provoca acidente na Avenida Paulista, previu nas capas dos jornais, dramática. Ainda ouvia a buzina do motoboy, que desviou apressado, sem tempo sequer de levantar o capacete para mandá-la à merda. Aliviada, sorriu para o vermelho do semáforo. E ajeitou o retrovisor, doida para se livrar daquele pêlo que especulava ter se desprendido por excesso de rímel "super volume" de uma marca barata.



Foi então que ela o viu. Teria preferido ficar careca nas pálpebras. Mas cada um de seus cílios estava onde devia estar. Cortina, abrindo e fechando, o palco de um amor intruso. Passado colado na retina. Há anos não o encarava assim, nem o sentia tão perto. Dentro. Reparou que o sorriso dele continuava o mesmo: era otimista o homem que lhe pedira para ficar quando ela decidiu fugir. História cheia de desencontros, lembrou. Sinal verde - e o incômodo acelerou primeiro. Ela tateou a bolsa e, atrapalhada, abriu a caixinha do óculos escuro enquanto dirigia. Se não conseguia esfregar de uma vez aquele incômodo dali, pelo menos não seria obrigada a vê-lo refletido nos espelhos. Aumentou o som, ridicularizando sua nostalgia. Atrevido, um cantor dizia "não se afobe, não" e ela piscava com mais força. Trabalhou doze horas seguidas em frente ao computador,vesga de cansaço - de dez em dez minutos percorria os quadriláteros do teto com o olhar, na esperança de surpreendê-lo distraído e sacudí-lo de si. Voltou pra casa com a janela do carro aberta, apoiando seu desespero num cigarro. Ele estava em tudo que ela via. Estacionou na vaga apertada e resolveu se vingar ali mesmo. O marido arrumava a mesa do jantar, com seu filho no colo: melhor não deixar vestígios. Na garagem silenciosa, chorou, chorou, chorou como nunca. Sem derramar uma única lágrima. Até afogar o homem que não podia caber nela. Na manhã seguinte, esvaziou um pote de colírio nos olhos negros. Só pra ter certeza.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Para ler em dois segundos.

"Liberdade na vida é ter um amor para se prender"
- Fabrício Carpinejar

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Ainda erguendo a minha viga mestre

Dois posts atrás, contei que, para escrever uma reportagem sobre a Ong Um Teto Para Meu País, participaria de um mutirão no feriado. E que colocaria telhas sobre a cabeça de Dona Gilmara sob o risco de descer da estrutura e não encontrar meu próprio chão. Sorte que lá também aprendi a serrar vigas e pregar tábuas. Enquanto reconstruo algumas ideias, compartilho um recado a minha mãe. Psicóloga competente e mulher incrível, de quem tento sempre roubar um pouco mais de sensibilidade e atenção nesse processo tão delicado que é ouvir - e entender - o outro.

"costumo dizer, mãe, que não saio imune das vidas que visito como repórter. parte do mistério está registrado no meu gravador. outra, esta muito maior, no meu coração. num barraquinho de suzano, deitada com olhos esbugalhados de medo dos ratos e dos pernilongos em bando, apalpei uma noite daquela realidade que jamais deveria existir. e, chacoalhada na alma, construí com os voluntários um novo lar para dona gilmara e mais 11 familiares. martelei estruturas, levantei paredes, serrei telhas e as ajeitei com carinho. olhei para aqueles jovens sujos de lama até a testa e desvendei a motivação deles num feriado chuvoso, tudo para erguer o teto de desconhecidos necessitados. uma experiência visceral. e veja só que coisa estranha. a repórter que eu escolhi ser tem muito a ensinar à jovem adulta aqui. preciso vestir mais a pele do outro para entendê-lo de verdade".

Conto mais sobre o projeto, os voluntários e os beneficiados na edição de fevereiro da Época São Paulo.

domingo, 8 de novembro de 2009

Bomba vermelho-sangue

Do blog Amor e Ponto, de Cristiana Guerra:

Casca.
Ele trazia o coração envolto numa casca. De modo que nem parecia haver ali uma batida. Ele era um morto-vivo, sorrindo para o mundo uma alegria comprada em loja. Um dia ele topou com ela. Ela, sim, trazia o seu coração nu, carne viva, pulsando convicto. E foi assim que os dois corações nunca se encontraram. Um dia a casca do coração dele se quebrou e quem ficou nu foi ele, diante do que sentia. Pegou seu próprio coração com as mãos, quente feito brasa, e o jogava para um lado e para o outro sem saber o que fazer com aquele amor que lhe queimava a pele. Quando olhou aquela bomba vermelho-sangue, o coração dela explodiu em sorriso. Mas o tempo passou de novo e o que ela viu crescer não foi amor: foi outra casca. Outra dura e forte a esconder mais uma vez aquele músculo frágil, a ponto de nem se ouvirem mais as batidas. E o coração que ela não mais vê, não mais sente. E o dela ganha paz de novo, como quem viveu um sonho breve e acordou.

sábado, 7 de novembro de 2009

Um Teto a mais - um chão a menos

Bem-vindo ao Jardim Maitê, diz uma placa impregnada de pó vermelho. Na rua principal, um porco chafurda com o nariz a lama que secou há pouco. Para cada dois dias de sol, uma chuva aumenta o nível do brejo onde vive Dona Gilmara. Tira o sono dos sapos e das doze pessoas que dividem o terreno com eles, sobre um barraco de 3mx4m feito de restos. De madeirites apodrecidas, de portas abandonadas, de telhas quebradas, de dignidade. Não há geladeira, televisão, pia, banheiro. Só três camas (uma de casal e duas de solteiro), um pequeno armário remendado, um sofazinho, um fogão e uma gaiola. E o passarinho, sem dúvidas, tem mais espaço para circular.


Este não é o barraco 3mX4m de Gilmara, mas o dela não é lá muito melhor que isso aqui.

A luz chega por uma gambiarra. Água fica em baldes para banho e para dar conta de diluir as necessidades fisiológicas. Ratos ali, segundo Dona Gilmara, botam medo nos gatos e os pernilongos passeiam pelas frestas, lanchando as bochechas redondas das crianças. Se chove, ninguém dorme. O brejo alaga o barraco e todos sobem nas camas como se pudessem se proteger de um naufrágio. Conheci nesta manhã de sábado Dona Gilmara para uma reportagem sobre a Ong que construirá, daqui a duas semanas, casas emergenciais para algumas famílias da comunidade. Na periferia da periferia. Perguntei se poderia dormir ali antes do mutirão. Ela me olhou incrédula. "Não ronco, juro". Seu riso cheio de espaços no lugar dos dentes garantiu qualquer décimo de metro quadrado à futura hóspede. Gilmara ainda nem ganhou um teto, mas sua sobrevivência já tirou meu chão.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Sonho a gente sonha

Pesadelo de encharcar o peito já me rendeu insônia e olheiras várias vezes. Sonho, nunca.
Até esses dias. Sonhei uma felicidade tão plena que só podia ser vivida nas profundezas do meu inconsciente.

É por isso que ando rejeitando bocejos e cílios pesados. Meia noite: decido que nada pode ser mais urgente que lavar a louça, esfregar o chão do banheiro, reorganizar os copos no armário da cozinha. Me esquivo do meu próprio sono. Prefiro não dormir.

Hoje recorri à Raca, minha maracugina em forma de amiga querida:
- Tá foda. Faço o que com esse sonho?
- Sonho a gente sonha, Nath. É nele que a gente vive o que escolheu não viver aqui, no mundo real.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Olhos de Ressaca

Gabriel diz que ela tinha olhos de ressaca, feito os da Capitu de Machado de Assis. Achava a coisa mais linda em Vera. Vidrado, foi arrastado para a imensidão dentro dela. Quando se conheceram em Belo Horizonte, eram vizinhos separados apenas por um quintal. Tinham 14 e 15 anos. No início de 2009, pouco antes de festejarem bodas de diamante, Camilo me convidou para conhecê-los. A família queria eternizar a história também em um livro, que tivemos dois meses para escrever. Num final de semana na fazenda deles em Minas Gerais, quando nos encontramos todos, mais me impressionou o não-dito. Por ser surpresa para o casal, não poderia existir uma entrevista. Observamos. Muito me impressionou como, na intimidade dos dois, palavras são coadjuvantes. É na fundura do olhar que eles se comunicam. Amor à primeira vista que se transformou em amor disposto à enxergar o outro sempre - e minuciosamente. Nas páginas de "Vera e Gabriel: 60 quilates", o texto sequer disfarça nosso fascínio diante de algo que, pelo menos para mim, ainda é coisa de outro mundo. Como explicamos na orelha do livro:

"Vera e Gabriel: 60 quilates é uma história real. Mas poderia não ser. Alinhavada ao longo de seis décadas de casamento - quase sete de namoro -, a trajetória desses dois poderia ter sido forjada por um romancista. Não o foi por acidente. Ou porque a vida, às vezes, se antecipa à poesia. Vera e Gabriel estão juntos desde o início dos anos 40, quando eram vizinhos. E porque o destino já havia os aproximado, teimaram de ficar assim para sempre. Namoraram no cinema, nos bailes do Minas Tênis Clube, em longos passeios na Praça da Liberdade. Aprenderam a dobras esquinas (e as irmãs de Vera) por um pouco de privacidade e se casaram em 20 de abril de 1949. Sete filhos, dezoito netos e nove bisnetos depois, Vera e Gabriel ainda passeiam de mãos dadas. Romance que vira romance, o amor desses dois nasceu para estar em um livro, do tipo que inspira o leitor ao mesmo tempo em que subverte os limites entre realidade e ficção."

Na mesma viagem à fazenda, uma das netas de Vera e Gabriel perambulava para todo canto gravando movimentos corriqueiros e depoimentos com lembranças dos dois. Petra Costa captou mais que imagens em sua câmera. No filme "Olhos de Ressaca", premiado como melhor curta-metragem do Festival do Rio, é impossível não sentir a alma delicada desse amor. Aqui, o trailler. No Porta-Curtas, em breve, deve estar disponível na íntegra.


E o lindo trecho de Machado de Assis, declamado por Gabriel no curta:

"Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios."

domingo, 27 de setembro de 2009

Fire needs air

Esther Perel, uma das terapeutas de casal mais famosas dos EUA, respondeu deste jeito a minha primeira pergunta:

- Você diz que cada vez mais atende em seu consultório casais jovens (com 20 e 30 anos) em relacionamentos sólidos. Eles se amam muito e são cúmplices, mas estão angustiados porque perderam o desejo pelo parceiro. Por que isso acontece?

- Fogo precisa de ar. Desejo precisa de espaço, distanciamento. Intimidade não garante bom sexo.

Anotei em letras maiúsculas no meu bloquinho. Fiz um círculo em volta. Uma seta. E nem precisava: ainda estou com a resposta feito mantra na minha cabeça. Tenho escutado de muitas amigas coisas como "amo muito ele, mas fico me esquivando pra não fazer sexo" ou "não lembro a última vez em que transamos" ou "não sinto mais tesão, só que gosto demais dele para terminar". Não estou falando de mulheres com 50 anos. Elas estão com seus vinte e poucos, em relacionamentos que não ultrapassam 5 anos. E o que vivem é muito mais comum do que imaginam - elas e todos nós.

Entrevistei a autora de "Sexo no Cativeiro" (sim, cativeiro = matrimônio) ontem, depois de ouvi-la 9 horas em um workshop para psicólogos brasileiros. É possível que saia uma matéria na revista Marie Claire de novembro. Coloco aqui um vídeo dela (em inglês) e trechos traduzidos por mim livremente.



"O que aconteceu com essa geração pós-revolução sexual? Eles têm contracepção em suas mãos, ideias democráticas em suas cabeças,a permissão para fazer quanto sexo quiserem, mas não tem desejo para fazê-lo. Por que? Porque eles vieram com a expectativa de que satisfação sexual deveria ser parte de uma relação totalmente plena (***). Se no passado nós tínhamos vergonha porque fazíamos sexo, agora temos vergonha porque não fazemos."

"Perguntei a uma colega: se eles se amam, se importam um com o outro, por que não querem estar juntos fisicamente? Ela disse: porque as pessoas não querem transar no cativeiro. Eles estão perto demais. Pensei que algumas vezes não é um pouco de intimidade que atrapalha o desejo, mas o excesso de proximidade. Os casais sempre falam do paradoxo entre domesticidade e desejo sexual. Por um lado, queremos segurança, estabilidade. Por outro, queremos mistério, imprevisilidade, risco."

(***) Esther explica que por "relação totalmente plena" entenda-se que as pessoas buscam alguém que preencha todas as suas lacunas: emocionais, sexuais, econômicas. Ou seja, não basta ter um bom namorado. Ele tem que ser o amante incrível, o amigo mais confiável, o colo de mãe, o provedor, etc. Para a terapeuta, criar conexões com outras pessoas é fundamental para evitar cobranças excessivas que geram frustrações sem fim. Em outras palavras: tenha a sua autonomia, recorra às suas amigas, família, etc.

"O parceiro não deve ser o melhor amigo", diz. Cultivar segredos e individualidade não é só um direito à privacidade como também um combustível para o amor. "Se temos que saber tudo é porque não confiamos. Confiar é tolerar o desconhecido". É esse "não achar que conhece o outro totalmente" que desperta a curiosidade, o medo de perder e, consequentemente, o desejo.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Ele não deixa o molho respingar. E eu não seguro mais a bandeja

Aos 90 anos, Seu Antônio implorou ao patrão da cantina italiana:
- Me deixa continuar trabalhando? Pelo menos aos domingos...
Ele jura que nunca deixou o molho vermelho das massas respingar em cliente nenhum.
E quer continuar carregando a bandeja, a despeito dos braços trêmulos. Fui entender depois porque ele não vai para casa descansar ao lado da esposa: é como se ali também equilibrasse a própria vida.

Saiu na Época SP

E eu ia postar sobre o meu cansaço depois de duas semanas trabalhando na madrugada (das 23h às 6h30), sobre a rotina virada pelo avesso e sobre as férias que nunca chegam...

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Estrondo, sal e calmaria

Acordei de um cochilo leve quando uma onda empurrou com força a areia fofa de Boiçucanga. Ouvi a espuma se recolhendo e um novo estrondo invadiu o quarto, a quinze metros da praia. Com saudade chacoalhada, enfiei um agasalho e fui sentar debaixo de uma árvore, a tempo de ver a chuva chegando - e os turistas fugindo no final de tarde. Incrível o que o vai e vem dessas águas provoca em mim. Olhos salgados, devo ter chamado a atenção de um rapaz, que não pediu licença para me fazer companhia silenciosa por alguns minutos.

- Você só pode ser caiçara também.
- Oi?
- Moro aqui há 14 anos. Rodrigo. Prazer.
- Oi, Nathalia. Mas por que vc diz isso?
- Porque a gente percebe quem tem essa intimidade com o mar. Também fico com essa cara quando venho aqui pra esvaziar a cabeça. De onde você é?
- Santos.
- Não mora mais lá, não, né?
- Não.
- Tá explicado. Veio recuperar as energias...



Rodrigo tem 28 anos. Construiu com o tio a pousada em que me hospedava. Uma graça, no estilo simples das casinhas dos pescadores. Ele já foi um, aliás. E trabalhou na peixaria ali ao lado também. Quis saber como era a vida em São Paulo, o que eu tinha achado da polêmica do diploma de jornalista (?!). Frequentador da igreja Bola de Neve, é um cara de voz mansa e olhar atento. Tanto que reparou na baita mordida de borrachudo que levei no tornozelo.

- É, os bichos pegam mesmo.
- Nossa, e como coça!
- Entra no mar. Ele cura tudo. Sério: isso aí é moleza.

Cresci com essa história de que não há ferida que o mar não seque. E o remédio milagroso ficava do outro lado da rua da minha casa. Ou emoldurado pela janela da sala. No parapeito dela, inspirada por aquela misteriosa imensidão, me debrucei em sonhos e devaneios. Logo embaixo, na rede ali pendurada, também balancei dores e angústias no ritmo das ondas mais violentas. Até dormir para despertar calmaria. Se a vida estava empatada, era banho de mar para se livrar do mau olhado. Para agradecer uma conquista, mergulho gelado (e inclusive noturno). Caiçara sabe que é quase uma religião mesmo. Lembrei que há muito eu não me abençoava...

O sol ardido veio só no dia seguinte. Não quis perder tempo: convidei minhas feridas para algumas braçadas. Saímos todas cicatrizadas.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

O homem que escrevia de trás para frente

Conheci um paraibano que, depois de 70 anos longe das salas de aula, voltou a estudar. Aos 84, acaba de alcançar o diploma do ensino médio. Mas não se dá por satisfeito: se prepara para o vestibular de direito. Aqui, um trecho da reportagem que estou escrevendo (com nomes trocados) e minha profunda admiração.


***
Caderno e coragem debaixo do braço, Clodair Pereira da Silva atravessou os corredores da Escola Estadual Sampaio Almeida, em São Paulo. Entrou na sala repleta de carteiras, escolhendo para si a mais próxima da lousa – a determinação e a catarata nos dois olhos exigiam que assim fosse. Sob o bigode preto salpicado pelo branco da idade, cumprimentou com um sorriso a professora cinqüenta e tantos anos mais nova. Enquanto os colegas do supletivo noturno ajeitavam-se em seus lugares, ele precisava era ajeitar o próprio acanhamento: “Eu era o mais antigo lá. Parei de estudar aos 9. Não foi fácil começar tudo de novo”. Na primeira aula, intrigou a professora de português.

- Seu Clodair, veja bem... O senhor está começando a copiar as matérias na última página do caderno. Assim vai ser uma desorganização só.

- Deixa. Faço do meu jeito – respondeu, incomodado.

Ao lembrar do episódio vivido há quatro anos, Clodair ri a ponto de fechar os olhos já pequeninos. “Quando a pessoa estuda desde criança, sabe arrumar as lições direitinho, né? Eu peguei o bonde andando”. A escrita, utilizando as páginas de trás para frente, refletia a cronologia invertida de sua vida. Octogenário, estava reaprendendo a ser o menino que a pobreza roubou da terceira série. Mas como essa é uma história longa, ele me convida a sentar na mesa da cozinha, invadida pelo chiado da panela e o cheiro do feijão. Está tão disposto naquela manhã de agosto que quase esqueço: ainda se recupera de uma cirurgia feita às pressas, duas semanas antes, por causa de uma apendicite supurada.