quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Como a Aids entrou na minha vida – e por que eu sempre me lembro dela

Escutei pela primeira vez a palavra “Aids” na sala da minha casa. Uma prima adolescente passava férias em Santos com uma amiga. Elas se arrumavam para uma balada quando minha mãe, psicóloga, as chamou para uma conversa. Tinha nas mãos uma banana e uma camisinha. Perguntadeira que só, fui me aproximando e quis entender por que ela vestia a fruta com aquela roupa de plástico e falava sobre umas tais DSTs (doenças sexualmente transmissíveis). Achei a aula improvisada tão genial que alguns meses depois resolvi falar sobre o assunto em um trabalho da disciplina de Ciências. Detalhe: eu estava na quinta série, não tinha mais que onze anos de idade, e a escola era de freiras.


Minha mãe me ajudou a montar as cartolinas e descolou caixas de camisinha. A ideia era impressionar, distribuindo-as para a classe. Lembro até hoje da cara de espanto da professora e dos risinhos maliciosos dos meus amigos. Na saída para o recreio, dezenas de bexigas de camisinha sobrevoavam o pátio católico. Fui parar na diretoria e escapei de uma suspensão assim: “Tia, eu não tenho vergonha do que fiz. Minha mãe vê gente morrer todos os dias por causa dessa doença, sabia?” Eu cresci e minha mãe continuou no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), dando diagnóstico e apoio a quem se descobriu HIV positivo.

Há 19 anos ela faz isso, o que me enche de orgulho e de curiosidade pelas histórias cotidianas. Não foram raras as vezes em que a vi chegar arrasada do trabalho. Um dia chegou com alguns docinhos em casa. “Fizemos uma festa no ambulatório. O bebê da G* não é soropositivo!” Esse episódio completou dez anos. Hoje, no Dia da Luta Mundial contra a Aids, liguei para essa paciente que minha mãe acompanhou tão de perto. Dona de casa, ela está com 40 anos e mora na Baixada Santista. Prefiro deixar que ela mesma conte sua história:

“Tinha 30 anos e trabalhava em uma creche quando descobri que estava grávida do meu quarto filho. Havia pouco tempo que tinha feito as pazes com o meu marido: ficamos casados por sete anos, nos separamos por seis meses e voltamos. Fomos ao posto de saúde para fazer o pré-natal. Então me pediram para refazer um exame de sangue por conta de uma “alteração”. Não sabia que era o teste de HIV, mas achei estranho.
Pegamos o resultado e meu marido leu o diagnóstico: POSITIVO. Entramos em desespero porque já tínhamos uma ideia do que aquilo significava. Perdi o chão, era como se a minha vida acabasse ali. Eu me sentia um lixo, tinha nojo de mim. Fomos encaminhados ao CTA para que ele fizesse o teste também. Deu negativo. Só aí descobri que tinha pegado o vírus do homem com quem me relacionei no período em que estávamos separados. O filho era do meu marido, mas o vírus era de outra pessoa.

Sua mãe me ouviu e me aconselhou com dignidade e respeito. Sem esse acolhimento, garanto que não estaria aqui para dar esse depoimento. Eu só pensava que o nosso bebê poderia ser infectado por um erro que cometi. Ele chorou muito, mas ficou do meu lado. Tive tanto medo que me rejeitasse! Precisei tomar vários remédios, passei mal durante toda a gestação, tive parto normal mas não pude amamentar. O leite poderia infectá-lo, isso se ele tivesse conseguido se safar do vírus. Os testes de HIV dele deram positivo por um ano, pois eu tinha transmitido anticorpos. Até que veio o aguardado resultado negativo de L* e foi uma festa!

Hoje ele tem dez anos, mas nem desconfia do risco que correu. Aliás, meu marido é a única pessoa que sabe que tenho Aids. Hoje, tenho uma vida relativamente normal. No início, cheguei a ficar quatro meses sem sexo porque temia infectá-lo. Os grilos passaram com o tempo: usamos todos os tipos e sabores de camisinhas. Este ano deixei de tomar o coquetel por conta própria. Estava cansada. Perdi 50 quilos em nove meses e agora estou me recuperando. O que eu diria para alguém que faz sexo sem camisinha? Nenhum momento de prazer vale mais que a vida. As consequências são duras demais e não há como voltar atrás”.

Entre 1980 e junho de 2011, 608.230 pessoas foram infectadas com o vírus da Aids no Brasil. Em São Paulo, só no ano de 2010, a doença matou 9 pessoas por dia. Quanto mais cedo for feito o diagnóstico, melhores serão o tratamento e a qualidade de vida. Os testes são gratuitos e sigilosos nos CTAs de todo o país.

Um comentário:

Anônimo disse...

Filha, novamente obrigada pela homenagem. Repito que amar o nosso ofício faz a diferença e vc sabe mto bem disso. Assim como vc que cresce e se encanta ao vestir a pele do outro, pra contar cada história com emoção e sensibilidade, eu aprendi muito com a possibilidade de compartilhar as dores e alegrias de cada paciente.
te amoo sempre mais...
Carla