quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Sonho a gente sonha

Pesadelo de encharcar o peito já me rendeu insônia e olheiras várias vezes. Sonho, nunca.
Até esses dias. Sonhei uma felicidade tão plena que só podia ser vivida nas profundezas do meu inconsciente.

É por isso que ando rejeitando bocejos e cílios pesados. Meia noite: decido que nada pode ser mais urgente que lavar a louça, esfregar o chão do banheiro, reorganizar os copos no armário da cozinha. Me esquivo do meu próprio sono. Prefiro não dormir.

Hoje recorri à Raca, minha maracugina em forma de amiga querida:
- Tá foda. Faço o que com esse sonho?
- Sonho a gente sonha, Nath. É nele que a gente vive o que escolheu não viver aqui, no mundo real.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Olhos de Ressaca

Gabriel diz que ela tinha olhos de ressaca, feito os da Capitu de Machado de Assis. Achava a coisa mais linda em Vera. Vidrado, foi arrastado para a imensidão dentro dela. Quando se conheceram em Belo Horizonte, eram vizinhos separados apenas por um quintal. Tinham 14 e 15 anos. No início de 2009, pouco antes de festejarem bodas de diamante, Camilo me convidou para conhecê-los. A família queria eternizar a história também em um livro, que tivemos dois meses para escrever. Num final de semana na fazenda deles em Minas Gerais, quando nos encontramos todos, mais me impressionou o não-dito. Por ser surpresa para o casal, não poderia existir uma entrevista. Observamos. Muito me impressionou como, na intimidade dos dois, palavras são coadjuvantes. É na fundura do olhar que eles se comunicam. Amor à primeira vista que se transformou em amor disposto à enxergar o outro sempre - e minuciosamente. Nas páginas de "Vera e Gabriel: 60 quilates", o texto sequer disfarça nosso fascínio diante de algo que, pelo menos para mim, ainda é coisa de outro mundo. Como explicamos na orelha do livro:

"Vera e Gabriel: 60 quilates é uma história real. Mas poderia não ser. Alinhavada ao longo de seis décadas de casamento - quase sete de namoro -, a trajetória desses dois poderia ter sido forjada por um romancista. Não o foi por acidente. Ou porque a vida, às vezes, se antecipa à poesia. Vera e Gabriel estão juntos desde o início dos anos 40, quando eram vizinhos. E porque o destino já havia os aproximado, teimaram de ficar assim para sempre. Namoraram no cinema, nos bailes do Minas Tênis Clube, em longos passeios na Praça da Liberdade. Aprenderam a dobras esquinas (e as irmãs de Vera) por um pouco de privacidade e se casaram em 20 de abril de 1949. Sete filhos, dezoito netos e nove bisnetos depois, Vera e Gabriel ainda passeiam de mãos dadas. Romance que vira romance, o amor desses dois nasceu para estar em um livro, do tipo que inspira o leitor ao mesmo tempo em que subverte os limites entre realidade e ficção."

Na mesma viagem à fazenda, uma das netas de Vera e Gabriel perambulava para todo canto gravando movimentos corriqueiros e depoimentos com lembranças dos dois. Petra Costa captou mais que imagens em sua câmera. No filme "Olhos de Ressaca", premiado como melhor curta-metragem do Festival do Rio, é impossível não sentir a alma delicada desse amor. Aqui, o trailler. No Porta-Curtas, em breve, deve estar disponível na íntegra.


E o lindo trecho de Machado de Assis, declamado por Gabriel no curta:

"Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios."