quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Olhos de Ressaca

Gabriel diz que ela tinha olhos de ressaca, feito os da Capitu de Machado de Assis. Achava a coisa mais linda em Vera. Vidrado, foi arrastado para a imensidão dentro dela. Quando se conheceram em Belo Horizonte, eram vizinhos separados apenas por um quintal. Tinham 14 e 15 anos. No início de 2009, pouco antes de festejarem bodas de diamante, Camilo me convidou para conhecê-los. A família queria eternizar a história também em um livro, que tivemos dois meses para escrever. Num final de semana na fazenda deles em Minas Gerais, quando nos encontramos todos, mais me impressionou o não-dito. Por ser surpresa para o casal, não poderia existir uma entrevista. Observamos. Muito me impressionou como, na intimidade dos dois, palavras são coadjuvantes. É na fundura do olhar que eles se comunicam. Amor à primeira vista que se transformou em amor disposto à enxergar o outro sempre - e minuciosamente. Nas páginas de "Vera e Gabriel: 60 quilates", o texto sequer disfarça nosso fascínio diante de algo que, pelo menos para mim, ainda é coisa de outro mundo. Como explicamos na orelha do livro:

"Vera e Gabriel: 60 quilates é uma história real. Mas poderia não ser. Alinhavada ao longo de seis décadas de casamento - quase sete de namoro -, a trajetória desses dois poderia ter sido forjada por um romancista. Não o foi por acidente. Ou porque a vida, às vezes, se antecipa à poesia. Vera e Gabriel estão juntos desde o início dos anos 40, quando eram vizinhos. E porque o destino já havia os aproximado, teimaram de ficar assim para sempre. Namoraram no cinema, nos bailes do Minas Tênis Clube, em longos passeios na Praça da Liberdade. Aprenderam a dobras esquinas (e as irmãs de Vera) por um pouco de privacidade e se casaram em 20 de abril de 1949. Sete filhos, dezoito netos e nove bisnetos depois, Vera e Gabriel ainda passeiam de mãos dadas. Romance que vira romance, o amor desses dois nasceu para estar em um livro, do tipo que inspira o leitor ao mesmo tempo em que subverte os limites entre realidade e ficção."

Na mesma viagem à fazenda, uma das netas de Vera e Gabriel perambulava para todo canto gravando movimentos corriqueiros e depoimentos com lembranças dos dois. Petra Costa captou mais que imagens em sua câmera. No filme "Olhos de Ressaca", premiado como melhor curta-metragem do Festival do Rio, é impossível não sentir a alma delicada desse amor. Aqui, o trailler. No Porta-Curtas, em breve, deve estar disponível na íntegra.


E o lindo trecho de Machado de Assis, declamado por Gabriel no curta:

"Olhos de ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova. Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos cabelos espalhados pelos ombros, mas tão depressa buscava as pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, cava e escura, ameaçando envolver-me, puxar-me e tragar-me. Quantos minutos gastamos naquele jogo? Só os relógios do céu terão marcado esse tempo infinito e breve. A eternidade tem as suas pêndulas; nem por não acabar nunca deixa de querer saber a duração das felicidades e dos suplícios."

4 comentários:

Solange Maia disse...

Nathalia,

Quando venho por aqui fico extasiada com sua capacidade absoluta em escrever das coisas "inescrevíveis"...

Que cena belíssima a de Vera nas piscina, que olhos, que amor...

Que prazer esse seu trabalho deve causar...

Bem, com relação à linda descoberta de que Carla é sua mãe, fico então, com a certeza de que essa qualidade certamente é genética.

Vocês me encantam.
Absolutamente.

Quem sabe um dia a gente não se conhece !

Beijo grande, à você, e à Carla !!!

Georgia Nicolau disse...

oi nathalia, não nos conhecemos e eu nem costumo deixar comentários em blogs. mas é que achei tanta coincidência... assisti ao Olhos de Ressaca no festival de curtas de SP e fiquei apaixonada pela história de Vera e Gabriel. Pesquisei e caí no seu blog- título,descrição, tão parecidos comigo! foi fácil identificar, desci um pouco e vi que você é virginiana como eu, jornalista como eu, curiosa como eu..
gostosa descoberta de feriado.
beijos e parabéns pelo blog e pelo livro!

Carla disse...

uma vida inteirinha de mãos dadas...

parece mesmo coisa de outro mundo, mas que bom saber que existe, que pode ser real.

alimenta de esperança nossos sonhos...

obrigada por nos mostrar a poesia que existe na vida real.
essa é uma belíssima história contada com encanto e delicadeza.
te amoooooo ;)

Camilo Vannuchi disse...

Gostei muito de ter feito esse livro com você.
E, se histórias tão extraordinárias como essa alimentam de esperanças nossos sonhos - como disse a moça-Carla -, gostei muito de termos, de alguma forma, sonhado juntos.
Tomara que possamos continuar assim, ouvindo histórias reais que parecem de ficção, e nos esbaldando com elas.
Quem sabe em dupla, novamente...
Um abraço bem apertado.