quarta-feira, 26 de agosto de 2009

E lá vem os 23 anos...



... ensinando a dar novos passos para seguir em frente sempre

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Micro literatura

Pílulas do Sem Ruído, que acompanho pelo Twitter e nas estações do metrô:

"Ela olhou pra ele. Era melhor quando era platônico".

"Já estavam há 5 horas conversando e tinham muitos assuntos em comum, mas foi no silêncio que descobriram suas incompatibilidades".

"Visivelmente desconfortável, saiu fantasiado de esperança. Foi encontrado nu ao relento, coberto de decepção".

Vai se quiser saber mais sobre o grupo e a iniciativa.

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Nó de uma orelha só


É verdade: os cadarços eu ainda amarro daquele jeito. Duas orelhinhas, cruza e dá a volta por dentro. Até os dez anos, importa é que os pés estão calçados. Mas, depois disso... Eu é que desisti de usar tênis. Cansei de asfixiar sempre, daquela maneira infantil, a frustração por não conseguir executar o movimento tão óbvio. Me explicaram quinhentas milhões de vezes a arte do nó adulto. Debochando, mostrando cada etapa bem-de-va-gar-zi-nho, desenhando no papel. Daí vez ou outra eu finalmente conseguia, decorava (!) e o mestre se enchia de glória. Vã, claro. Em menos de meia dúzia de tentativas, eu esquecia. Então aposentei meus tênis. Hoje pensei no único par guardado no armário. No nó que eu não sei fazer. Porque, de vez em quando, nem todas as instruções do mundo ajudam a gente a se livrar dos mesmos erros e das velhas manias. Uma amiga disse que isso ninguém mais me ensina. "Descobre-se sozinho, numa espécie de estalo". Prometi a ela descansar o salto alto e gastar mais a sola (e os cadarços) do meu tênis.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Miudezas

Esses dias você se esgueirou nos lençóis e fugiu dos meus braços sem me despertar. Não vi, mas sei que se arrastou até o banheiro, tomou aquele banho quente demorado e fez a barba de cima para baixo. É por isso que ela cresce logo, amor - avisei milhares de vezes. Enrolado na toalha, na ponta do pé, você deve ter atravessado o quarto para pegar sua roupa meticulosamente dobrada, separada na noite anterior. Senti seu beijo quente bem abaixo da orelha, passando o nariz no meu rosto sonolento, e quis dizer o quanto estava plena por te ter perto de novo. Tá frio, não esquece o casaco - foi o que deu pra balbuciar. Você sorriu, como sempre. Afundei naquele edredon que nos faz esquecer o alarme - a vida fora do nosso universo macio. Minutos depois, encontrei sua calça de pijama largada de última hora. E, nela, meus imensos fios de cabelo. Lembrei das reclamações: não sei como eles alcançam esse lugares, vivem se enroscando em mim! Escancarei cortina e janelas para a luz entrar. Lá estava outro detalhe. O travesseiro ao lado amassado no formato da sua cabeça. Sabe, preto, o tempo e o amor redimensionam miudezas.

"a vida leva e traz / a vida faz e refaz"

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

No teu escuro, me ensina a tatear

Silvia Valentini não é cega. Convive apenas com a miopia, sem saber precisar quantos são os graus que desembaçam qualquer imagem à distância: "deve fazer uns seis anos que não troco estes óculos". Queria ter dito a essa artista plástica que abandonasse o par de lentes pendurados sobre o nariz. Parecem lhe servir apenas como acessório, tamanha a clareza da sua visão de mundo e seu foco no outro. Silvia é idealizadora do Boletim Ponto a Ponto, um periódico mensal que compila reportagens de jornais e revistas transcritos em braille. O calhamaço de páginas brancas e totalmente pontilhadas leva conhecimento a deficientes visuais e surdocegos, que tem pouquíssimo material atualizado disponível para leitura. Assim, milhares de pessoas têm compreendido melhor o que acontece no mundo que também lhes pertence. Descobrem, encantados, o que é o tal do pré-sal, como funciona um vulcão ou que forma possui um carrapato. Escrevi sobre o projeto na edição de setembro da revista Época SP, em breve nas bancas. Foi através dela que conheci Sandra Taioli Cassares, outra mulher de abraçar a alma.



Era quinta-feira de feriado quando toquei a campainha do apartamento dessa assistente social aposentada. "Oi, querida, pode entrar", convidou, estendendo a mão e me puxando para um abraço. Não podia ter me guiado melhor naquela situação. Muitas vezes, ajo feito quem tateia no escuro diante de portadores de alguma deficiência: espero ela me tocar ou não? vou na frente ou sigo?

Percebi que Sandra conversava comigo bem perto, como se quisesse enxergar com outros sentidos a minha altura, o jeito como eu gesticulava, a minha expressão de jovem repórter. Não tenho ideia se percebeu o quanto me surpreendi com uma bobagem: a casa era absolutamente arrumadinha, normal, com tudo combinando. Sofás, mesinha de centro, televisão, samambaia pendurada sobre a janela. Através dela, vi o céu da Mooca feito um tapete azul. "Obrigada por me receberem nessa manhã de feriado ensolarado", comentei. "Está sol, é? Que beleza!", respondeu o marido, me cumprimentando. A luz refletida nas paredes era só o breu costumeiro para o simpático casal. O que eles vêem é uma sensação de calor. Fechei os olhos para marcar a minha estupidez distraída.

Mas eles sequer ligaram. Andavam de um lado para outro com passos precisos, como se calculassem mentalmente a metragem da poltrona para o corredor. Talvez vejam alguns vultos e silhuetas, pensei. Nada. Sandra nasceu cega; Ronaldo ficou aos vinte anos. Ela, que foi alfabetizada em braille, surgiu com uma Reglete (régua com cavidades que formam palavras ao serem perfuradas por uma ponteira de aço). Ponto por ponto, numa habilidade invejável, escreveu meu nome completo. E tudo o que eu consegui ver foram montinhos em relevo, que não me diziam absolutamente nada, mas me encantaram os dedos. A professora segurou minha mão e tentou ensinar o beabá.

"Você pode buscar um Boletim e ler pra mim?", abusei. Afundei mais de uma hora naquele sofá com estampas irmãs das que moravam na sala da minha bisavó. Ao meu lado, com as páginas no colo, Sandra empunhava o indicador e lia as matérias que eu havia lido semanas antes no Estadão, na Veja... E que se transformaram em novidade naquelas formas miúdas. No momento em que ouvi o outro me contar o que eu não podia decifrar sozinha. Sem perder o hábito acadêmico, ela me pediu para encontrar o número de uma página qualquer. Explicou o formato dele em braille, mas logo desisti do desafio. E imaginei os dois folheando em uma enorme banca de jornais e revistas: sem um tradutor vidente por perto, as palavras e as imagens são inalcançáveis.

"Preciso ir embora!", me despedi, na esperança de que me botassem em algum canto só para observar suas rotinas. Tive vergonha de explicar que demoro para conceber certas superações. Ronaldo saltou da porta ao elevador e, certeiro, apertou o botão para mim. Disfarcei, mas não resisti a uma última olhada nos olhos dele. "Não é possível, Deus. Esse homem deve estar me vendo". Do jeito convencional, não estava, não. Mas tenho cá minhas desconfianças: como as aparências não lhes dizem nada, eles devem enxergar além.