terça-feira, 7 de julho de 2009

Dona Maria, sua carta e seu portão


"Essas cartas podiam vir até sem endereço", me desafia Seu Rubens, carteiro há mais de 35anos na Cidade Dutra, lá pros lados do Grajaú, extremo sul da capital paulista. "Podiam, é?", pergunto. "Pois eu garanto que não voltava umazinha pra essa central no final do dia. Conheço a casa - e a vida - de cada um desses destinatários", ele emenda.

Quem quiser saber mais sobre esse carteiro (que cultiva barriga e sorriso generosos a despeito dos 20km diários de percurso), vai ter que ler nas páginas da Época SP de agosto. Aqui eu conto sobre a Maria que o Rubens me apresentou. E o sobre o portão que ela bateu na minha cara durante a reportagem. Voltemos para o Centro de Distribuição Domiciliar.

- E dessas 1.200 cartas que o senhor deve entregar hoje, quantas são de pessoa física pra pessoa física?
- Vixe - e ele remexe nos nichos de cada CEP, bagunçando toda aquela correspondência separadinha por número - Tenho entregado só cobrança, extrato bancário e publicidade.
- Nem uma?
- Ah, achei! É do filho da Dona Maria. Tá preso, o rapaz. Faz mais de ano já.
- Seu Rubens, tem certeza? Seria uma história muito boa. Cartas representam um vínculo muito maior para quem está recluso. Me leva na casa dela?
- Só se você prometer que não vai contar que fui eu quem te contei. Porque você sabe, não sou fofoqueiro. Mas ando pelas ruas o dia todo, converso com as mesmas pessoas há tanto tempo... Acabo sabendo mesmo. Mas ela pode não gostar.
- Prometo.
...
- Dona Mariiiiiaaa! (Seguida de algumas palmas no portão) Sou eu! Carta pra senhora.

E a senhora, frágil aparência, touca na cabeça, sai sorrindo para Seu Rubens. Me estranha, mas quer logo é pegar naquele envelope branco. Checar se está ali a letra em vermelho quase infantil, tão torta e insegura sobre as linhas onde se lê "Remetente".

- Que coincidência. Estava agora mesmo escrevendo para ele porque estranhei que não tivesse chegado nada nesse mês.

Interrompo, educada, falando baixo e pisando em ovos.
- Bom dia. Sou repórter e estou acompanhando a rotina do Seu Rubens. Fiquei surpresa ao ver que, em meio a 1200 cartas que ele tem para entregar hoje, a sua era a única pessoal. Daí quis saber mais sobre essa história. É um hábito que poucas pessoas mantêm atualmente, né? Com telefone, internet...
- É. - respondeu Maria, longe de querer alimentar minhas esperanças.
- Então. Essa carta é do seu filho? Ele mora longe?
- Mora.
- E vocês não se falam muito por telefone?
- Não.
- É bom pra matar as saudades de qualquer forma, né? Mas, faz tempo que ele está fora?
- Preciso responder? Eu não quero entrar em detalhes.
- Não, claro.
- E além do mais (empurrando o portão), estou com almoço no fogo. Você me dê licença. Não quero falar sobre isso.
Dona Maria acenou agradecida apenas para Seu Rubens. Enfiou a carta no bolso do agasalho de lã, como se pudesse se esconder inteira ali, e sumiu.

A sua chuva apertou e fiquei parada naquele portão. Sem toldo, sem a história boa que eu queria escrever. Pensei em tocar a campainha e insistir. A vida DELA daria um bom molho pra MINHA matéria. Mas a vida era dela, só dela. E enquanto eu voltava pra redação pensando nisso, o fotógrafo dizia que, se fosse ele, daria um jeito de entrar, diria saber do filho preso e tentaria arrancar algum depoimento. Como se ela tivesse cometido um crime e fosse obrigada a declará-lo. Quebraria o vínculo de confiança que Seu Rubens tinha, há décadas, com aquela mulher. Desrespeitaria a dor (e por que não a vergonha) que ela deve sentir diante de algo tão íntimo.

(Imaginei uma desconhecida tocando a campainha do meu apartamento: “Oi, tudo bem? Soube que você está há meses sem falar com seu pai. O que você tem a dizer sobre isso?”).

Por causa de algumas linhas nas páginas da revista?
Prefiro deixar as minhas em branco.

4 comentários:

Felipe disse...

Preta,
com o jornalismo "entramos" na vida das pessoas - mtas vezes sem pedir licença. Ouvimos intimidades dos personagens, conhecemos gente e lugares diferentes ... Mas no final, o relato, as histórias não são nossas. Reproduzi-los sem autorização é romper com a confiança que alguém depositou em nós. bjos Fê

Carla disse...

respeito e delicadeza com a dor do outro...
teamobjos

Unknown disse...

Só esse relato já deu uma história bonita!
Gostei!
Vou virar frequentadora do seu blog.
Bjinhus

Unknown disse...

Muito bonita a história do Seu Rubens!!
bjs
Thatá