sábado, 11 de julho de 2009

Meu dia de visita na febem feminina


Gabi tem uns olhos verdes, cabelo loiro tingido até a cintura, bochechas rosadas combinando com o batom, corações pequeninos que se equilibram na ponta dos brincos. É irritantemente angelical, essas meninas de 17 que conservam o jeitinho dos 12. E pink. Era desta cor o conjunto de moletom que usava no dia em que nos encontramos na Mooca. Unidade Chiquinha Gonzaga, Fundação Casa (ou Febem feminina). Meteram-nos numa salinha administrativa: eu queria entrevistar a garota presa há 5 meses por tráfico de drogas (incentivada pelo namorado com quem morava). A repórter aqui não estava interessada no delito, mas nas cartas que ela escrevia para aliviar a solidão, a liberdade de que foi privada. Nos despedimos num hall que antecede seu mundo gradeado. Com os olhos curiosos, acompanho um carcereiro abrir o primeiro cadeado. O som que a leva de volta para um corredor onde a perco de vista me impede de ir embora. "Diretora, gostaria de conhecer a unidade toda", arrisco. "Podemos fazer um tour rapidamente", ela autoriza.

O setor das mães
Sentada bem em frente à porta da cozinha onde todas acabavam de almoçar, ela enruga a expressão quando me vê. Quero crer que é a dor provocada pelo molequinho que lhe suga o bico do peito. Outra dá uma garfada enquanto balança o carrinho do recém nascido com o pé. São sete crianças com suas mães e três grávidas. Todas com menos de 20 anos e 11 meses. Aos treze anos, uma enfrentará em breve o segundo parto. Elas dormem num quarto coletivo: para cada cama de solteiro, um berço colado. Quase nunca recebem visitas - principalmente dos pais, que não raro são "trancas" (presidiários) ou desconhecidos ou desinteressados mesmo. "E você já viu como dia de visita em presídio faz fila?", comenta uma coordenadora. "Aqui não existe isso, não". Tento interagir, sob olhares densos e amargos: "Ah, que lindo! De quem é esse corinthianinho?". Silêncio. Melhor conhecer o restante da unidade, penso, e me desculpo pela invasão.

A unidade provisória
"Para cá vêm as meninas que estão esperando julgamento. Ficam aqui até, no máximo, 45 dias", me explicam. A caminho do pátio, cruzo com duas garotas encostadas na parede. "Boa tarde, senhora", dizem. Estão aguardando: minutos depois se encontrarão com o juiz para descobrir suas penas. Uma outra, aparentando 14 anos, se encolhe no chão, apertando os joelhos contra o peito. Moradora de rua e viciada em crack, chegou há um dia. Observa (se é que é capaz de distinguir qualquer coisa com aqueles olhos vagos) as duas filas formadas no centro da quadra de cimento: sentadas com as pernas cruzadas, elas passam pelo momento de higiene. Em dupla, se dirigem a um tanque e recebem uma escova de dentes feita de um plástico bem flexível (para evitar que vire arma). Tomam banho de sol e conversam. E eu, que temia não encarar demais para não lhes dar a sensação de que estava em um zoológico analisando espécies diferentes, me senti exatamente assim. Um E.T. Nos quartos, nenhum pertence. Só beliches igualzinhos, com um cobertor e um travesseiro-folha-de-papel. Individualidade ali, nem mesmo no arrastar de chilenos que se confundem por toda parte.

A unidade permanente
Meio-dia e meia é hora de faxina na cozinha. O grupo que varre, ensaboa e lava tudo tem prestígio. "Se elas estão nessa função é porque são merecedoras de confiança", conta a diretora. L* nos cumprimenta e é apresentada. Alta e forte, a negra com o cabelo curto, colado ao couro em traças, carrega um tímido sorriso branco. Olha para as próprias mãos, os dedos que empurram cutículas. "Ela tem uma voz linda, Nathalia. Vamos, cante, L*", a autoridade incentiva. Então ela ergue o queixo e solta uma versão em português de "La Solitudine", música cantada por Laura Pausini (e também Renato Russo). Enfio o gravador no bolso da jaqueta para bater palmas, encantada com o talento da garota de 19 anos. Quando agradece e sai, pergunto pelo quê ela está pagando nesses três anos de reclusão. L* matou o filho. E ninguém sabe me explicar a causa do homicídio. Talvez nem ela mesma saiba.
Mais um breve bate papo, desta vez com M*. A única pergunta que tenho coragem de fazer, ao ouvi-la contar que sua condenação está acabando, é: "...e para onde você vai quando sair daqui?". "Vou morar na rua, me enfiar em algum abrigo. Não conheci meu pai, morava minha mãe mais minha vó. Só que as duas estão presas também", responde, plantando tantas outras inquietações em mim. Andando, percebo que chamo atenção de algumas meninas sem uniforme e desconfio ter visto cenas de ciúme. São as homossexuais, que se recusam a vestir-se de pink e, em muitos casos, "adotaram" essa opção sexual pela circunstância, pela extrema carência afetiva.

Uma hora e meia de tour, coração pesado e vontade louca de chorar, digo à diretora que tenho compromisso e preciso ir. Entro no táxi e desabo. Me dou conta de um dos tantos privilégios que tenho: posso fugir daquela realidade tão obscura e sofrida. Estou de visita. Elas, não.

17 comentários:

Camilo Vannuchi disse...

Queria ter a sua profissão, Nath. Juro. ;-)
Tenho apenas uma perguntinha a você, porque não consigo evitar esse desejo furtivo de botar caraminholas na sua cabeça: você pode fugir daquela realidade tão obscura e sofrida, é verdade. Mas aquela realidade obscura e sofrida fugirá de você?
Cuide disso. Para que fique sempre a esperança. E obrigado por inaugurar os comentários no meu blog. Na condição de minha única leitora, pelo menos por enquanto, seu gesto vale muito!
Merci.

Carla disse...

Voce tem olhos de ver e coração de sentir. Esse talvez o maior privilégio.
amovc

Anderson Santiago disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anderson Santiago disse...

Lindo relato.
Doído, sofrido, mas traduzido em palavras sinceras, quase amenas...

Anônimo disse...

Olá, primeiramente parabéns pelo blog. Eu vim aqui em busca de informações. Você sabe quantas unidades de Fundação Casa Feminina existem no estado de São Paulo?
Se vc puder me ajudar de alguma forma por favor me responda por email.
Um abraço!
gabipagani@hotmail.com

Minha vida disse...

Lendo seu depoimento, cai em lagrimas, vivi por 2 anos e meio neste lugar onde vc descreveu, e exatamente isso oq vc descreve, muito triste e humilhante.

Anônimo disse...

tenha paz

marta disse...

tenha paz

Unknown disse...

daiane
naõ tenlho nem palavras eu vivi nesse lugarzinlho por um ano e meio e naõ dezejo nem pra um calhorro a umilhasaõ

Anônimo disse...

chorei quando vi seu depoimento sobre a febem da mooca. ja passei la em janeiro de 2011 e fiquei 1 mes e alguns dias e eu sei que tudo isso que vx falaou e tudo verdade e eu nao pretendo que ninguem passe por la por que la é a maior umilhaçao.nem um cachorro merece ia naquele lugar eu naum queru voltar numca mais. eu agradeço muito a deus de ter saido daquele lugar , ate fome vx passa la dentro .agora estou mais susegada pq eu estou cumprindo uma medida de semi liberdade la na penha aqi em sao paulo mesmo eu fui presa por trafico de drogas ....................eu quero que deus abençoe a minha prima que esta presa la na mooca na 3 ela foi internada qye deus a ajude-a

ana paula......... disse...

naum sei se eu choru ou falu como foi quandu eu´passei por la ; mas e ruim de mais eu ficou 1 mes la dentru e vi tudo isso imagin e se eu fiocasse mas de um mes la dentro o de cima foi eu que escrevi tambem.............sou ana paula tenho 15 anos e pasei por la e so foi humilhaçao.

ana paula disse...

é zikka mesmu naaum e´facil ficar naquele feneno................ass:ana paula

ana paula disse...

é zikka mesmu naaum e´facil ficar naquele feneno................ass:ana paula

SABRINA disse...

É NATHALIA TIVE NESSA MESMA UNIDADE DA FEBEM,NÃO É FACIL,PASSEI PELA PROVISORIA DEPOIS INTERNATO E POR ULTIMO PAMI POIS ESTAVA GRAVIDA,TIVE MEU FILHO AI DENTRO....

Anônimo disse...

Estive nesta mesma unidade mooca a muitos anos atras . E realmente nao desejo a ninguem . Vc chora e ninguem te escuta . Ja presenciei funcionarios maltratando meninas e elas ppr sua vez sem poder dar um piu pois se nao atrasavam o tal relatorio. Um funcionario me odiava me fez ficar de frente com todas as internas e falou bem alto coloque o dedo na parede e as pernas bem afastadas. Isso é o seu castigo se pisar na bola cmg durante o tempo que eu achar necessario.So eu sei oq é este sofrimento . Nao desejo para ninguem . Gracas a deus para nunca mais !!!

Anônimo disse...

É só por Deus estou aqui lendo mas em pranto pois minha filha está lá e eu sofro muito por mais que tento ser forte a saudade é de mais mas não tenho condições de ir visitar estou pedindo a Deus que me dea muita força pra lutar aqui fora por ela chorar dia e noite mas tenho muita fé que que jamais vai nos abandonar nessas horas amo muito minha filha e sei que nunca mais ela vai voltar pra esse lugar que Deus os abençoe .

Anônimo disse...

Não gosta de cadeia, não cometa crimes ;)

E ainda tem chance de estudar, fazer vários cursos.. qtos jovens de bem queriam e não podem? Mas uma vagabunda de 19 anos que matou o filho não suja a ficha, estuda sem preocupações e ainda é tida como coitadinha... vidão hein.. isso é Brasil