quinta-feira, 20 de maio de 2010

Porque o amor sempre bate um bolão

Estou batendo um bolão. É o que tenho dito aos colegas de redação que, com um riso contido no canto dos lábios, duvidaram que eu pudesse escrever sobre futebol. Vejam só que injustiça: muito antes de receber da minha editora uma pauta sobre as Copas do Mundo, poderia usar tampinhas de cerveja para explicar as regras do impendimento. Mas é bem verdade que não acompanho jogos e costumo esconder meu lado meio-corinthiana-meio-são-paulina. Torci bonito o nariz ao voltar de férias e receber a missão de entrevistar ídolos da seleção brasileira (cujos nomes, confesso, eu mal lembrava). Mas, ah, grata surpresa.

Aqui, eu vou contar uma história de amor.

Gylmar dos Santos Neves foi o homem solitário sob as traves na Copa do Mundo de 1958. Esguio, mãos firmes, elasticidade para dar grandes voos e bloquear as investidas contra o gol brasileiro. Depois de erguer a taça de campeão na Suécia e encontrar uma inédita euforia nacional no desembarque, o rapaz de 27 anos ganhou direito à férias. Foi para Lindóia, destino badalado da época. E se deu aquele furor no hotel: os homens assediavam o goleiro e as mulheres, o galã. Gylmar só queria saber de uma menina linda que se banhava na piscina. Observou a grande área livre, estufou o peito e preparou a coragem para o tiro de meta. Oras, se podia agarrar bolas chutadas por robustos tchecos, seria forte o sufiente para puxar conversa. Assim o fez - e ganhou alguns sorrisos. Acontece que tinha um pai libanês na marcação. "Desde quando criei filha minha para jogador de futebol?", dizia, retrógrado. Enfurecido com o ataque abusado, decidiu apelar e mandou que a família arrumasse as malas, pois estavam de partida. Gylmar e Rachel trocaram olhares e ficaram no 0 x 0 mesmo. De todo jeito, se descobriria depois, haveria um impedimento: a moça já estava prometida para outro.


Como torcida é torcida (e tira até o timão da série b), os irmãos de Rachel se mobilizaram para ajudar o namoro às escondidas. Não que achassem o amor coisa sublime - eram corinthianos fanáticos e adoraram a proximidade de um ídolo do esporte. Amistoso vai e amistoso vem, inventaram de casar. Rachel fugiu de casa às pressas e se meteu numa igreja paulistana com o namorado. Mas Gylmar era tão famoso que... imagine se, hoje,Ronaldo Fenômeno resolvesse pegar um cineminha no shopping Santa Cruz. Alguém cochichou que devia ser o tal goleiro da seleção, que comentou com outro e logo uma multidão invadia o lugar. Enquanto os dois driblavam o padre para escapar pela lateral, o rádio já anunciava que Gylmar tentava se casar naquele momento. E o libanês, em expediente na fábrica de sua propriedade, surtava de ódio. Dizem que chegou a correr para proibir a união. Os dois chegavam à outra igreja e, mais uma vez, precisavam fugir do tumuldo. Um esquema tático surreal. Trocaram alianças na terceira: GOOOOOLLLL! Em seguida, entraram num avião rumo ao Maracanã - o marido de Rachel precisava vestir as luvas.

Ela foi deserdada pelo pai e passou quase quinze anos sem ter contato com ele. Seguiu sua vida: criou dois filhos praticamente sozinha, por causa das viagens e competições de Gylmar (ele jogou 18 anos com a camisa verde-amarela). Um dia, recebeu a ligação da mãe: o pai convidara ela, o genro e os netos para um almoço. "Lembro de chegar lá com mamãe e papai", diz o filho Marcelo, "e meu avô fingir como se nada tivesse acontecido nesses anos todos. Foi um dia muito especial para nós". Naquela mesma tarde, depois de ser visto ajoelhado no quarto, rezando, o libanês faleceu. Os irmãos de Rachel, então, decidiram abrir o cofre e dar a ela o que lhe era de direito. Encontraram mais que dinheiro. Revistas, como a Cruzeiro, traziam fotos de Gylmar posando com a mulher e os filhos. E eu não posso deixar de pensar quanto amor e perdão ele também trancou naquele cofre, sem nunca ter conseguido partilhar isso com ela. Gylmar é considerado o melhor goleiro da História do futebol brasileiro, está entre os 25 "anjos barrocos" do Museu Do Futebol. Conquistou muitos títulos até se aposentar aos 36 anos; depois administrou uma concessionária de automóveis. Em 2000, ao se preparar para uma homenagem no RJ, sofreu um grave AVC. Justo quando teria mais tempo ao lado de Rachel. O senhor de 79 anos que abriu as portas de seu apartamento no Guarujá, para esta repórter, tem o lado esquerdo do corpo paralisado e dificuldade na fala. Mas seu olhar tem uma lucidez cortante, suas expressões faciais são frases inteirinhas e seu amor pela mulher parece tão imenso e perene quanto a vista do mar em sua janela.

Um comentário:

Carla disse...

senti saudade de ler essas lindas histórias, contadas com tanta delicadeza...uma habilidade ímpar de conjugar palavras tocando a alma e a emoção. amo ;)