quarta-feira, 14 de julho de 2010

Devolvam a minha concha

“Noite passada, fiz como você nunca entendeu. Apaguei a luz do abajur e me encolhi, caramujo, no canto esquerdo da cama enorme que sempre quis ter. Um desperdício para você, que vive se esparramando. Uma ironia pra mim, líder de revoluções por mais espaço e liberdade e independência e autonomia. Aquela história que a mãe repete só pode ser verdade: devo ter mesmo me sentido sufocada na barriga dela, adiantei a hora do parto com chutes tão impacientes que não houve tempo de lhe anestesiarem. Mas isso foi há mais de 23 anos. Estou falando de ontem e de um silêncio profundo.

Não teve graça, irmã. Não ouvi o ranger da tua cama vagabunda ao lado – só pra eu saber que te mexias perto. O pai não dormia no sofá da sala com os óculos apoiados no peito e a tevê ligada. Por onde é que a mãe andou arrastando suas pantufas velhas atrás de um copo d’água que não a vi? A Bel confundi com um cobertor peludo, dobrado na altura dos pés. Eu, que passei infância e adolescência odiando dividir o quarto contigo e o único com banheiro da casa com a família toda, estava plenamente sozinha em 80 metros quadrados. E, não sei se foi a sonolência, mas tive a impressão de que eram oito mil metros quadrados – tamanha a falta que vocês (juntos) me fizeram.

Tive vontade de puxar conversa no escuro como quando pequenas, no castigo, depois de tirá-los do sério. Brigávamos todas as noites, correndo aos berros e nos xingando, inconformadas por não encontrar na outra sequer meia afinidade. Enxergamos, por muito tempo, apenas as diferenças. Às vezes desconfio que nosso pai calibrava a intensidade das palmadas para que ardessem igualmente em nós duas. Não adiantava. “O meu vergão tá muuuuito maior que o seu”, eu provocava. “Lógico, tu é mais branca, tem que estar mais vermelho mesmo”, tu respondia, apoiada no travesseiro ensopado. A competição seguia até que nos percebíamos cúmplices na dor e no erro. Então bolávamos estratégias e chantagens emocionais para nos livrarmos da punição. Pela fresta da porta, alternávamos a coragem e a voz falsamente chorosa: “Paiêêê... a gente já fez amizade. Pode sair do castigo?”.

Comecei a adormecer, Mari, com uma cena curiosa na cabeça. Estávamos nós quatro trancados em algum lugar, cada um sentado numa quina. Passamos um longo tempo fungando o choro e engolindo a mágoa, sem trocar palavra. Eu esbarro no interruptor e vemos nossos vergões. Estamos todos muito, muito mais machucados. Primeiro nos acusamos, medindo e disputando o tamanho de nossas marcas. Depois descobrimos que a dor é a mesma e pedimos, uns aos outros, permissão pra sair desse castigo.

Pior é que, nesta parte, eu já devia estar sonhando”

2 comentários:

Mazica disse...

Engraçado que ontem mesmo vim aqui e estranhei o fato de vc nao ter atualizado mais o blog. Fiquei de comentar mas, vc me conhece, eu sempre deixo pra depois..
Eu sempre soube que um dia vc ia sentir falta da minha bagunça, irmã hahaha posso ir um dia pra sp e nao lavar a louça, ou deixar meu quarto novamente aconchegante.. pro meu urubu querido. =D
Fica bem, irmã. Estamos juntas, sempre. Não existe castigo nenhum, e sim oportunidades de crescimento, aprendizado. E os vergões não passam de 'colas' pra relembrar o que já passamos... Eu sonho contigo, vc sabe disso. Mas além de tudo, acordo do teu lado, não importa como o dia amanheça.
Te amo. Beijos.

Eduardo Zanelato disse...

que lindo, nath!