segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Reflexões de uma quase sem-teto (ou como meu prédio torto voltou ao prumo)

Era uma casa muito engraçada, a minha. Porque não foi feita com muito esmero, na década de 1960, deu para entortar. Naquela época, os engenheiros ignoraram que o solo de Santos é um dos piores do mundo e ergueram dois prédios de 17 andares, em frente à praia, apoiado em uma base rasa, argilosa e mole. Com o tempo, o condomínio Núncio Malzoni foi pendendo para o lado: alcançou um desaprumo de 2,10 metros, virando atração turística na cidade. Eu morava no prédio mais torto de Santos. Cresci com essa referência e com os pedidos de amigos durante o recreio, num misto de curiosidade e zombação: “Me leva para conhecer seu apartamento?”

Enquanto eu realizava um tour pela minha casa, no 11 andar, listava as bizarrices que me eram tão normais e familiares. Tinha até uma bolinha separada na sala para mostrar que, ao ser colocada no chão, ela invariavelmente rolava. Mostrava a água que empoçava no box do chuveiro, na banheira e nas pias. O quadro que cismava em ficar desalinhado. As portas que batiam quando não a segurávamos. E contava que o morador de cima tinha um relógio de pêndulo que quebrava direto, que minha mãe dormia de “ponta-cabeça” na cama para não sentir a pressão do desaprumo, a bisavó tinha tonturas quando andava por ali e etc, etc, etc. Por um período, cogitei cobrar ingresso. Papai não deixou: achou que seria abusivo.

Viver em prédio torto nunca foi privilégio exclusivo dos moradores vizinhos à Pinacoteca de Santos. Eram cerca de 90 edifícios na cidade com algum nível de desaprumo. Em 1995, um laudo do IPT entregue à prefeitura indicou que o recalque estava grande demais e poderia colocar em risco a vida das pessoas. Por pouco não houve uma interdição por “colapso iminente” – quase fui uma “sem-teto”. Lembro que algumas reportagens publicadas sugeriam que haveria um “efeito dominó” na orla, caso a minha casa tombasse sobre o edifício vizinho. Não bastasse o burburinho danado, o síndico Ari e o engenheiro Carlos Eduardo Maffei anunciaram que um plano para desentortar os edifícios estava em andamento.

Pioneiro, o projeto levou dois anos e meio para ser concluído. Para resumir, a idéia consistia em fazer fundações de 60 metros, onde o prédio seria apoiado em uma camada rochosa, e movimentá-lo com ajuda de macacos hidráulicos (num mecanismo parecido com a troca de pneus de um carro). Meu pai foi contratado como engenheiro responsável pela obra, que começou em meados de 1998 e custou dois milhões de reais. Na escola, quebrei o pau algumas vezes quando diziam que ele era maluco. Depois corria para chorar no banheiro, ofendida e amedrontada. Desconfio que meu pai também tenha achado que era maluco – e chorado escondido. Em janeiro de 2001, os últimos milímetros foram renivelados. Estouramos uma champagne. E transbordamos de orgulho, juntos.


Era uma vitória, mas nós ainda não sentíamos os efeitos práticos da novidade. Morávamos no bloco de trás, ainda desaprumado. E estranhos continuavam me parando no portão, cheios de perguntas e doidos para serem convidados a conhecer meu apartamento. De lá para cá, muita areia mudou de lugar em frente à nossa janela. Eu e minha irmã saímos de casa e descobrimos uma vida “reta”. Houve uma separação que abalou todas as nossas estruturas. E há duas semanas, depois de anos de negociações para reunir toda a verba necessária à segunda obra, o meu prédio deixou de ser um cartão postal às avessas. Não será mais fotografado como se fosse sua ilustre concorrente italiana, a Torre de Pisa.


O engraçado é que não me reconheço na casa em que vivi por dezoito anos. Ando esquisito, me pego olhando para o galão de água que não revela mais o desnível, seguro portas que não batem mais. Vou demorar uns meses para me adaptar. O prédio foi consertado, mas estávamos tão acostumados à antiga posição dele que o correto agora parece contraditoriamente estranho. A obra deveria incluir o alinhamento de seus moradores, arraigados aos hábitos de antes. Pensei muito no que a conclusão desse processo que durou quinze anos significa para nós, simbolicamente. Sem bases sólidas e profundas, é mesmo difícil resistir (ao tempo, à dor, à solidão...). A gente balança, entorta, enverga, quase cai. Mas, com esforço legítimo, sempre dá para voltar ao prumo.


5 comentários:

Eduardo Zanelato disse...

Lindo, lindo, Nath.
Adorei - e levarei as reflexões comigo, por algum tempo.

Escreva mais, por favor!

Edu

Anônimo disse...

Muito bom, Nathalia. Adorei, lindo texto e confissão.

Bjos, Vivian Cunha

Anônimo disse...

sao pessoas ousadas,iguais ao seu pai,que nos motivam a nao desistir de alcançar objetivos.

Anônimo disse...

Parabéns pelo texto, analogia com a vida e pela qualidade da forma de empolgar o leitor. Lindo, lindo, lidno!!!!!!

Anônimo disse...

Me lembro de quando eu tinha uns 6 anos e nós disputávamos o lado da banheira que tinha mais água. hahahaha
Sinto falta de vocês aqui perto.
Parabéns pelo texto.
Um beijo enorme.
Carolina Arouca